'Man is least himself when he talks in his own person. Give him a mask, and he will tell you the truth.' Oscar Wilde
Espelhos: um irresistível magnetismo atrai-me para a amaldiçoada admiração. O reflexo da imensidão de mim condensados num corpo. O convergir do génio humano num bocado de matéria – mas que admirável construção! Foco-me errática e obsessivamente na riqueza de pormenores. Desejo blasfemicamente a multiplicação de mim. Regojizo-me com a ideia de ser eu, e de o ser para o resto da vida. Mas quando me apercebo que um espelho junto à cama me leva a um extâse tóxico, quer esteja sozinho ou acompanhado, pela assistência de mim próprio a toda a magnitude que em mim encontro, sou atropelado em reluzente epifania pela parábola de Narciso, aquele que depois de rejeitar Eco, a sua ninfa, por maldição vive o resto da vida apaixonado pelo seu próprio reflexo na água, acabando por se suicidar afogando-se.
Conheço a minha demência; saboreio-a. Sento-me e escrevo sobre ela. Fecho a porta e rodo a chave enferrujada da casa do Cercal onde repouso nestes dias do mês mais quente do ano para os demais, deprimente e paranóico para mim. Odeio Agosto. Na sala ouço a voz cortante da Júlia Pinheiro. Televisão, a droga dos felizes e conformados. Coitada dela, que assiste, enroscada num lençol fresco e amarrotado sobre um sofá antigo, de tipo senhorial, aos programas da hora em que o sol é demasiado perigoso para se estar na praia. É uma bébé entretida com um brinquedo colorido. Displicente e paternal, despertou-me um sorriso. Já vai longe a histérica gritaria de ontem, com as acusações gastas e o ouvi-la cabisbaixo, escondendo a indiferença, fingindo um afecto que não tem espaço em mim. No meu egocentrismo, estou demasiado dedicado aos meus exorcismos para pensar em mais alguma coisa. Leio, fumo, surfo. Penso e às vezes escrevo. Sabe-me bem estar aqui. Um homem pode ser feliz com qualquer mulher, desde que não a ame.
Sei agora que ela - o meu quarto de hotel - com todos os seus sonhos e aspirações, desejos e ânsias - ela que merecia ser um lar e não um poiso - afigura-se perante mim de forma tão aprazível quanto desprezível. Adoro-a, a minha amiga, com quem falo das coisas que entende, a quem invejo o pragmatismo e simplitude. Arruma a minha desarrumação, propicia-me todas as noites deitar-me em lençóis esticados e sacudidos, cozinha o jantar sob um lume hipnotizante e, parece-me que quase por magia, levanta e lava os pratos enquanto continuo letargicamente sentado à mesa, abraçado a um balão ardente que me alimenta a alma. E é, mais que isto, muito mais, aquela com quem sonho, não com ela mas através dela, por via da radiante semelhança do seu corpo e cabelo. Até o tom de voz que já só relembro remotamente. Quando me deito a seu lado viajo para aquele espaço-tempo diferente, tão rigorosamente delineado quanto irremediavelmente irreversível, de uma pureza e ternura que já morreram, e com elas toda a minha capacidade de amar. Não a amo. Não amo ninguém. Amo-a às escuras, por trás, em silêncio. Só a amo na minha loucura, na clonagem doentia da minha percepção deturpada.
Em época de redenção evito Narciso e o seu destino. Normalizar, aprender a ser como os demais, imitá-los, admirá-los, é trilho e meta para mim. Talvez assim consiga um dia sentir de novo o fascínio doutrora... pelos outros, por uma mulher. O homem a quem ninguém agrada é incomparavelmente mais infeliz do que aquele que não agrada a ninguém. Porque ao nos agradarmos demasiado, acabamos por estabelecer parâmetros sobrehumanos ao nosso próprio agrado. E viveremos enclausurados numa torre de intransigente exigência, cercados por um fosso de tormentosas comparações. Presos no momento, onde é tão mais fácil adulterar um Passado imperfeito, convencendo-nos da sua perfeição, do que planear um Futuro alternativo.