'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






27/10/2009

"É inegável o gosto que dá pensar sozinho. É um acto individual, tal como o é nascer e morrer." C. Drummond A.

Somos a meia idade da vida na Terra. Quatro mil milhões de anos passaram, quatro mil milhões passarão. Surgimos – e é no termo surgir que mora a metafísica do meu crer e do meu querer – como procariontes, seres unicelulares; milhões de anos de fotossíntese e a multicelularidade metaformiza-nos em insectos gigantes e crustráceos. Procurámos alimento e conforto na água e peixes fomos; portento da evolução, voltámos à terra, anfíbios; com a graça dos anos, reptilizámo-nos. Mas o calor do ventre era titânico apelo, e prodigiosamente irrompemos mamíferos, primatas, homo sapiens actual. Como seremos nos momentos imediatamente antecedentes à explosão solar, daqui a quatro biliões de anos? O nosso estágio biológico é um milímetro nos quilómetros de evolução. Mas talvez a nossa divindade assente no facto de tornarmos a nossa insignificância especial.
E tu enfias-te numa máquina para ires trabalhar bronzeada segunda-feira?
Pensa.

O legado que carregamos vai além da nossa compreensão, derradeiros exemplares duma gloriosa espécie, praguejando um planeta outrora equilibrado. Curiosa, esta espécie dominou ecossistemas, floras e faunas, elementos e outer space. Talvez também seja essa a nossa divindade – então residiria justamente na nossa insignificância singular. Mais não somos senão um todo, ao longo dos tempos: a formidável evolução de 4 mil milhões de anos. Sozinho, o João Silva, engenheiro, casado, não é nada; apenas um grão de areia no deserto da imemoridade. E no entanto foi pai de três filhos, mimou-os, ensinou-lhes princípios. “–Ensinou-os a sobreviver, tal como a leoa às crias”, dir-me-ás. Mas o João Silva não os ensinou somente a caçar ou trabalhar. Ensinou-lhes a rectidão, a bondade e a equidade. E é precisamente isso que revela o desejo de preservação de uma espécie per si, e não por qualquer subjectividade para quaisquer dos seus elementos (ou por quaisquer instintos). É a isso que me refiro quando digo que tornamos a nossa insignificância especial, única, divina: a espécie humana faz por significar a sua reducente existência.
E tu defines-te como português ou jurista ou médico, benfiquista, liberal ou conservador, muçulmano ou cristão, socialista, monárquico, anarca ou heterossexual?
Pensa.

Relativizando, relativizo-me e te. Relativizo-nos e vos. Parece-me que é essa a cura da angústia de não saber, e o elixir da despreocupação, por não pretender saber. Nada é mau, comparativamente, tal como nada é bom, confrontadamente. Vivendo de um vestígio, exacerbando insensibilidades e distanciando-me do que é dos homens, indeliberadamente asfixio o elemento divinizante a que me referia atrás. Pintando de vulgar a existência, escondendo-me do intento de aqui estarmos e perdendo-me do sentido, inexisto. Tal como se a insignificância existencial, possível fosse, ainda se tornasse mais opaca.
Sei agora que se não servirmos a nossa brevidade de amor, conhecimento e criação, fartando-a (à brevidade) de desejos e impulsos, deleitando-a de prazeres, deliciando a nossa vontade, então nem breve seremos, mas apenas lacunas no livro brancacento e eterno do tempo.
E eu preocupo-me com o “trato sucessivo” de já nem sei bem de quê?
Pensa.
Penso.

25/10/2009

Abaixo o COMUMNISMO!

22/10/2009

mário david, PSD. mário david, eurodeputado, vice-presidente no PP Europeu. mário david é o passado, é o homem doutro tempo, que não merece sequer a honra duma maiúscula. mário david é um imbecil. Era-o e é, rosto da pior escória que nos calamita o poder: os conservadores morais, oponentes da ruptura niilista. Gosto de me pensar pacifista, moderado, temperado; mas ver este ignorante nos media convidando Saramago - projecção moderna do país, um dos poucos que nos faz orgulhar de a ele pertencermos - a renunciar à nacionalidade lusitana, desperta-me ódio visceral, tão pretérito a mim quanto descabido ao meu conforto quotidiano, talqual André Breton a De Gaulle, ou Andreas Baader à sociedade alemã do pós-guerra.
O JOVEM SÍRIO
Que linda que está a princesa Salomé esta noite.
O PAJEM DE HERODIAS
Olhai para a Lua. Que estranho aspecto ela tem! dir-se-ia uma mulher erguendo-se de um túmulo. parece uma mulher morta. Dir-se-ia que anda á procura de mortos.
O JOVEM SÍRIO
Tem um aspecto muito estranho. Parece uma princesinha com um véu amarelo e pés de prata. Parece uma princesa cujos pés são como duas pombas brancas. dir-se-ia que está a dançar.
O PAJEM DE HERODIAS
É como uma mulher morta. caminha muito lentamente.
(...)
O JOVEM SÍRIO
Que pálida está a princesa! Nunca a vi tão pálida. Parece o reflexo de uma rosa branca num espelho de prata.


in
Salomé, Oscar Wilde

14/10/2009

Legendado por mim. Agora já não há desculpas.

07/10/2009



















Para um vespertino e noctívago, as manhãs são tão cerradas como as noites para um camponês. E foi nesta última, uma hora antes do normal acordar para as aulas, que despertado fui por uma enfurecida turba de vizinhos que se iravam por entre os três pisos da garagem. Tinham-me assaltado o carro. E a outros sete. Mercedes, audis, os fora-da-lei ‘sabiam ao que iam’ (talvez eu sempre quisesse ter utilizado esta expressão, ou talvez intrinsecamente esconda um feitiço – do francês fétiche – pelo vulgar, ou talvez se trate de uma aposta com um amigo). O mesmo m.o. (muito Criminal Minds?), vidro de trás partido, porta-luvas, consolas e bagagens remexidos.

Desço ao -3 de mocassins, calças de ganga e a t-shirt que mais tinha à mão: alças. Pareço um John Mclain imigrado na Suíça. O meu primeiro contacto é com o meu velhaco vizinho de baixo que, piscando-me o olho em desleal cumplicidade, me diz que vem aí a polícia, e que eu deveria tirar as ilegalidades do carro… Rio-me, espirituoso. Ele sabe que eu sei que ele sabe que já foram inúmeras as vezes que, tardas horas, me viu deliciar-me com especiarias arábicas à janela. Aceno levemente, como quem desvaloriza um descabimento, e afasto-me. Por prudência, obedeço-lhe, discreto. Duas ou três ganzinhas, reservas…

Vejo o meu Pai entre uma juíza de roupão e o sr. engenheiro da crise de meia-idade e da namorada de 28. Procuro-a – à namorada de 28 – por entre a vizinhança, na esperança de que também tivesse descido com alguma túnica exótica ou uma camisa de dormir licenciosa (que mal tem? se todos me afirmam como púbere em relação a tudo o mais, por que o não posso ser também em relação à libidinosidade?). Mas não desceu. O meu Pai vem ter comigo e, em pronta consolação, lembra-me que são apenas bens materiais, que logo à noite compramos tudo novo, que o seguro paga o vidro, que não vale a pena perdermos a paciência com aborrecimentos tão insignificantes como este. Pela primeira vez desde que me arranquei aos frescos, solitários lençóis, sinto-me verdadeiramente lúcido e fito directamente o meu Pai. Involuntário, acabara de subscrever Séneca – o estóico renunciador e contemplador das realidades simples, contemporâneo da transição pagã-cristã – ou Brahmananda Saraswati – o guru do tantra e da meditação transcendental, cujos ensinamentos me ajudam a relativizar tudo o que me envolve –. Que desmedida admiração lhe devo.

Todavia, não é uma aflição material que me atemoriza. Coisas são coisas, que interessam para além daquilo para que servem? O que me mantém estático, a alguns metros dos carros e dos vidros espirrados pelo chão, é a minha peculiar fobia. Não consigo deixar de imaginar quem é que terá estado dentro do meu carro. Se tiver sido um bando de pretos ou mitras, toscos e desorganizados, ou uma família de ciganos, com os seus sotaques engraçados, ou mesmo uma quadrilha de ucranianos, com o método que só o frio pode impor, tudo bem. Mas a imagem que insiste em me ocupar a psique é a de um arrumador de carros, decrépito e moribundo, a remexer-me nas coisas. Então, simulado, assim que o meu Pai se afasta (para não pensar que sou mais desassisado do que o que de facto sou) pergunto a um vizinho o que me embaraça mas que não consigo desprezar: ‘– Então, isto terá sido obra de quem? Não me parece que tenha sido coisa de drogados, o que é que acha?’. Claro que não tinham sido drogados, o grau de organização é por demais evidente. Mas a irracionalidade de uma psicopatologia impele-me a repetir a pergunta ao mais graduado dos agentes, assim que chegam ao local. A mesma resposta. Rio. Rio agora. Mas o riso aliviado é um riso amarelo. Só me emergem as palavras de Churchill, ‘uma piada é uma coisa muito séria’.

05/10/2009

'Rebelo da Silva era um romântico. Em 1848 - estava Karl Marx a publicar O Manifesto Comunista - Rebelo da Silva escrevia sobre as trombetas e as charamelas da praça de 'Salvaterra, os veludos do conde dos Arcos a cavalo, a dama que num camarote escondia as rosas vivíssimas do rosto, o touro negro que investe e espera que o corpo ferido do conde lhe entre nos cornos, a dor do velho marquês de Marialvas, que vinga a morte do filho, e o rei D. José que toma uma decisão. Disso Rebelo da Silva escreveu um texto célebre: A Última Corrida de Touros em Salvaterra. Claro que não foi a última, era conversa de romântico... Herdeiro do Manifesto de Marx, o Bloco de Esquerda fez um programa eleitoral em que diz o que lhe repugnam as touradas. O BE tem uma única câmara e, essa, é a de Salvaterra de Magos. É no Ribatejo, a sua festa maior é dos Toiros e do Fandango, e os seus doces mais conhecidos são os barretes. Qual o espectáculo preferido da presidente da vila, Ana Cristina Ribeiro, que é do BE? Touradas. Há quem veja contradição nisto. Eu prefiro ver a confirmação do provérbio quioco: "As águias voam alto mas têm de baixar para comer." Isto é, Ana Ribeiro só é, nisto, o que o BE há de ser, no resto, quando for preciso.'

Ferreira Fernandes in Diário de Notícias, 5 Outubro 2009