'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






31/08/2009

'Femmes Damnées', Charles Baudelaire (excerto)



(tradução +/- livre)

Teremos acaso cometido alguma acção estranha?
Explica, se és capaz, o meu transtorno e o meu horror
Tremo de medo quando me dizes: 'Meu anjo'
E ainda assim sinto minha boca ir em busca da tua.

Não me olhes mais assim, ó tu, meu pensamento!
Tu que eu amo para sempre, minha eleita...
Mesmo que fosses um embuste à minha alma
E a própria origem da minha perdição!

-E quem diante do amor ousa falar do inferno?
Maldito para sempre o sonhador inútil!
Que primeiramente quis, por sua estupidez,
Enfrentando um problema insolúvel e fútil,
Às delicias do amor juntar a honestidade!

O que deseja unir, num acordo místico,
O dia com a noite, o frio com a flama,
Jamais aquecerá o seu corpo paralítico
Com aquele rubro sol que se chama Amor!

Aqui somente é lícito servir-se a um único mestre.
Mas Hipólita, de súbito gritou, em enorme aflição:
'-Sinto em meu ser abrir-se um abismo,
E este abismo é enfim meu Coração!

Ardente como um vulcão, mais fundo que a tormenta,
Nada aplacará este monstro dentro de mim!
E nunca há-de saciar a sede de Eumênide
Que o queimará, archote em punho, até ao fim.

Que os véus de nossa alcova nos ocultem do mundo,
E que o cansaço dê repouso a tais agruras!
Quero extinguir-me no teu vórtice profundo
E no teu seio achar a paz das sepulturas...'

-Descei! Descei, ó lamentáveis vítimas!
Descei por onde o fogo arde em clarões eternos!
Mergulhai neste abismo em que todos os crimes,
São flagelados por um vento oriundo dos infernos!

Jamais um raio clareará vossas cavernas,
E pelas fendas os miasmas delirantes
Infiltrar-se-ão brilhando, como lanternas,
Penetrando-vos os corpos de odores nauseantes!

Cumpri o vosso destino, almas desordenadas,
E fugi do infinito que trazeis em vós.

-Hipólita, meu coração, que me dizes destas coisas?
Compreendes agora quão pueril é oferecer
O holocausto sagrado das tuas rosas em botão
Aos ventos lá de fora que as podem esmorecer?

-Hipólita, meu amor, vira para aqui a tua cara
És a minha alma e o meu coração, o meu todo e a minha metade
Mostra-me esse olhar cheio do azul dos céus,
Deixa-me contemplar esse bálsamo bem-vindo;
Dos prazeres mais obscuros eu erguerei os véus
E adormecer-te-ei num sonho infindo...