'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






26/02/2009

18/02/2009

Tempo

Um pássaro amarelo voa e alto morre.
Cai com a graciosidade dos anjos para um chão torpe, devorado pela azia infame do tempo. A abruptidão seca desse instante fatal golpeia-me com a monstruosidade da contida descrição que lhe devo, despejada na apatia de um ponto final.

O tempo perece-nos e leva-nos. Não por vicissitude, não por capricho, só porque sim. Porque existe, porque passa; e, distraído, nunca espera. O tempo tira-nos o tempo. Rouba-nos o que já tivemos: a fábula acabou e deixa-se de acreditar em livros. Esses ombros que te descaem são o marasmo da idade que não esqueces, e essa barriga onde adormeço é o depósito dos teus anos dourados. O teu longo cabelo dourado está fino e as mamas renderam-se à gravidade quando as ancas se sacrificaram à feridade dos partos. Mas nada que não esperássemos: o corpo é, desde o início, o condenado de se ser. O teu prejuízo foi o espírito, porque calados, graves e maduros perdemos a impulsividade estúpida da juventude, que nos prejudicava mas que incendiava aquele quinhão da alma que não arde por dinheiro ou estatuto, respeitabilidade ou estabilidade.

A expectação dessa era esticava até ao lado longínquo do devaneio.

Agora, escondendo o meu alvoroço atrás da distância, não me deslumbra a sabedoria das mulheres de rua nem as rugas da prova. Expeço a temperança que fabulas e a desapiedada gravidade com que me imitas, copiando a índole grisalha de que esperava que me libertasses. Porque o que quero são as palpitações e as improvidências! E aquele chorar balançante. E as tuas dúvidas insensatas.
Vivo por esse fôlego de imbecilidade infantil que já não to sinto, hesitante e tremente como um caloiro, farto e fértil como os campos verdes de Maio.

Espreito, mas só por um instante. Baixo-me, recolho-me na posição fetal onde me agasalho de ternura, depois de indecorosamente cumprir o priapismo com que pareço acordar todas as manhãs. Corro parado e toco a redenção com as pontas dos dedos, mas são os meus medos lhe ditam a impertinência, pela irrecorrível sentença da irreversibilidade do tempo – que não devolve o branco da candura. Tempo gasto, vasto, nefasto. Fosse de pendência monetária e pouparia toda a minha vida por uma máquina que me retornasse àquele momento antes do lúgubre ponto de não-retorno que nos raptou a alvura!
E agora já me não interessa pagar o resgate.

Sim, o Tempo. O mesmo que nos tira o tempo, e nos perece e leva, também nos conserva nessas masmorras do mesmo tempo que são a memória.

Nestes termos e pelos mais de Direito, pede-se a sentença de Vossa Excelência. O vosso douto despacho de fls. que me não interessam vaticina a usurpação de tudo que nos conhece. E a morte é o tempo, que nos cobiça, e nos esquecerá; e esquecidos ainda em vida, quando pesando aos netos, enlevados, ocupados, fingimos a calma e a resignação ao inconformável. Na última paragem desempenhamos o papel de uma vida ao transmitir a harmoniosa sensação de plenitude aos que agora iniciam a viagem.
E recordados somos por uma década, velados por uma semana, chorados por um dia.

O tempo que cobriu a distância deste tempo é a ponte desfeita que nos cativa na eterna margem dos que esqueceram aonde vai dar o caminho.
E aqui, nos despojos do desencontro, através do enfado da absolvente busca e da inanidade que desmorona e trai, mas que é consolo maior (por dissipada a esperança), a putrefacção que o tempo nos legou converteu a dor em macio autismo da minh’alma, não pensando, amando, sentindo, intuindo.

16/02/2009

O Elogio da Antipatia - Parte III de IV

III – As Acepções Adulteradas e A Desvantagem Popular

O problema das terminologias são os sentidos estigmatizados que, força da ‘girialização’ da linguagem, por via duma mecanização do discurso, e duma automatização das expressões, vão surgindo como pejorativos ou abonatórios. Afigura-se como óbvio que, quando elogio a antipatia não me refiro à má educação, rudeza ou aspereza de feitio. Antipatia é, pelo contrário, uma ausência de empatia pelos desconhecidos que connosco se cruzam – simplesmente porque não tem que existir; o indivíduo mais não tem que fazer senão respeitar o ‘espaço cívico’ do próximo, a sua privacidade e a sua esfera.

Naturalmente que a cortesia e a amabilidade são valores máximos do civismo, e que nada têm a ver com simpatia.
Simpatia é o que o povo tinha e tem por Salazar, é a amizade pelo vizinho que se espreita, é o imiscuir na vida alheia, o abelhudismo que é moeda nacional e o sentimento do ‘coitadinho’, bandeira hasteada no cume da lusitana mesquinhez; é a saudade, é ‘a minha humilde casinha, num modesto 1º andar’, e o ‘se há porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente’; são os beijinhos e as palmadinhas nas costas, os sorrisos gratuitos e as modéstias indistintas; é a labrega e inconveniente ofertação de partilha e o consequente abuso de confiança; é o ‘santinho!’, ‘bom apetite!’ e ‘com licença, vou rasgar uma folha’ e é o ‘estás bom? – vai-se andando…’; é falar de mais e não atentar nas palavras, é desprover de significado e desgastar a língua egrégia, é provérbio e esperteza atónita; é morrer ignorante – pequeno tal como se nasceu; é comodismo e absentismo, é o desalento e o desencanto, é o costume e a moda, a tradição que não é nova que é sempre o que já era, é a Era que não renova, é chumbar sempre na mesma prova; é rir sem saber de quê, é o que eu vejo mas ninguém vê. E é abuso, grosseirismo obtuso e desuso, aos olhos de todos, menos da quimera do nobre povo luso.
Cada pessoa tem direito ao seu individualismo que só pode ser atingido plenamente com uma moderna noção de comunidade que já nada tem a ver com a realidade aldeana e saloia do século passado, mas com um respeito máximo pelo próximo que começa por não importunar a sua pessoa.

A mediocridade do povo enquanto classe social é, a meu ver, essencialmente demonstrada a dois níveis: o primeiro é o do seu profundo desinteresse (globalmente considerado) que resulta necessariamente numa opacidade espiritual; o segundo através duma infernal falta de educação e civismo.
Como tenho vindo a defender até aqui (mormente noutros textos como Mentecaptidão de um Povo e A Responsabilização da Burguesia), no âmbito do primeiro aspecto o povo encontra-se em paridade com classes sociais mais elevadas, padecendo ambos duma profunda mentecaptidão, manifestando-se subjectivamente em pessoas desinteressantes e na pequenez intolerante com que abordam as questões. Aqui, como disse antes, nada pode ser reprovável em relação ao povo, essa classe infantil, que não teve espaço para se desenvolver, e é altamente criticável em relação à burguesia, que só mais não fez por força duma (genética?) inelasticidade mental.
Mas é no segundo aspecto referido que as classes mais informadas levam a grande vantagem. É que, apesar de a grande maioria possuir a mediocridade espiritual do povo, gozam de uma polidez incomparavelmente superior à deste, onde esta é quase nula. E a diferença é abismal, pois a delicadeza é uma virtude inafastavelmente basilar para a convivência social. Eu não me disponibilizaria nunca a uma discussão com alguém que bradasse ou revelasse qualquer fervilhação bárbara. Pois as pessoas que facilmente se exaltam rapidamente perdem a razão, precipitando-se, e por conseguinte, revelando uma incoerência argumentativa, o que leva a que não demonstrem os seus pontos de vista, mas sim aqueles a que, imponderadamente, o momento os conduziu
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14/02/2009

'C'est par la musique qu'a commencé l'indiscipline'.
Heráclito de Éfeso

03/02/2009

O Elogio da Antipatia (Parte II de IV)

II – A Absolvição Geográfica

Não me orgulho especialmente de ser português. Mas defino-me como tal, não renuncio à nação nem me prostituo com as cores duma bandeira que não a minha. Todavia, reitero o proeminente orgulho de ser europeu, e a convicção socrática de ser um cidadão do mundo, aberto a influências de outros povos, culturas, hábitos. A tacanhez proveniente dos povos que se fecham em si mesmos (verbi gratia, os povos árabes) é por demais evidente e deve constituir um anti-exemplo a todos os que, sob a haste dum patriotismo obsoleto, se manifestam como avessos à pluriculturalidade globalizante. Quem vê o mundo através das brechas duma janela embaciada considera que lá fora tudo é estranho e hostil. Costumes doutros homens doutros sítios afiguram-se-nos como bizarros; desta forma, impossibilitam-se de absorver o que de melhor têm as outras culturas, pois está estabelecido à partida um sentimento estigmatizante em relação ao que nos é alheio. É, pois, naturalmente, que concebo o meu fascínio por culturas mais a norte, à imagem do meu Pai e das minhas convicções sobre a forma de estar em sociedade, e usufruo das influências e inerentes juízos em relação ao perspectivismo de outras do mundo inteiro, mormente de uma certa espiritualidade oriental.

Homogeneizando o país numa palavra, decerto optaria por ‘grosseiro’. E no país dos grosseirismos, a rudeza e o provincianismo reinam, hegemónicas. Um certo transtorno obsessivo compulsivo estreita as ruas por onde passo. A gerentocracia com complexo de esquerda (estadistas da geração de Abril, que por lá estagnaram) deste país inunda-nos de parasitagem social, indigência e Estado-dependentes ansiosos pela fatia desmerecida do final do mês. E eu, preso no sítio onde nasci, sou enclausurado pela pequenez do que me rodeia. Desde as pessoas, os seus juízos prévios, a sua mediocridade, aos seus hábitos. Por exemplo, um sítio como o Lux é-me já quase tão inóspito quanto um mercado ao sábado de manhã. A claustro e a agorafobia estão, em mim, perfeitamente alinhadas com a petulância e a incapacidade de partilhar espaços com a obtusidade dos outros. Voyeur dos espaços públicos, tudo lhes estudo e – abstraindo-me dos estigmas – tento-lhes perceber a essência: e essa pequenez é miseravelmente evidente!
A reprovação que me atinge no olhar dos cépticos, dos ‘politicamente correctos’, ou daqueloutros que atingiram certo altruísmo universal ou certa noção lata de comunidade assente num conceptualismo igualitário balizado pelo amplo desmérito e desqualificação, suscita em mim a peculiar estranheza distanciada de um adulto normal face ao perfeito descabimento de um idoso senil. A incorrecção convencional das minhas opiniões deveria ser jubilada – e a delicadeza com que a exponho imitada pelos que nela se vêem expostos!

02/02/2009


Have you ever seen a one trick pony in the field so happy and free?
If you've ever seen a one trick pony then you've seen me

O Elogio da Antipatia (Parte I de IV)

I – O Incontornável Ascendente

Foi por culpa da minha Mãe que a simpatia me passou a saber ao adocicado servilismo dos seguidores. Tal como Émile Zola, ‘J’accuse!’. O máximo expoente da solicitude que conheci – fruto da bondade e afectividade da minha Mãe, no limiar do humano, e ao mesmo tempo sua máxima definição – criou-me no espírito um condicionalismo adverso à simpatia latina, que foi evoluindo ao longo da vida; actualmente as minhas concepções de simpatia e provincianismo são absolutamente híbridas, tal como as de dolo eventual e negligência consciente em Direito Penal. De facto, é-me extremamente árduo dissociar alguém simpático, extremamente prestável e solícito, de alguém abelhudo, imiscuído nas vidas alheias, subserviente e humilde (e a humildade é o calcanhar de Aquiles do cinismo – cinismo tão útil a maior parte das vezes!; tão mesquinho nesta vertente).

Foi pela imitação da austeridade do meu Pai que adoptei, desde sempre, a pose altiva com que alguns me vêem. Mas muitos anos mais tarde, quando os juízos de valor passaram a assentar mais no empirismo do que na precipitação, percebi por fim que a sua austeridade nada deve à altivez ou pretensão; tem a ver com a sua perspectiva de civismo e bom-senso. A antipatia e inacessibilidade com que é retratado não passam afinal dum extremo pudor, integridade inabalável, sobriedade virtuosa, postura conservadora (e retrógrada, manifestamente) e de uma necessidade de privacidade e de recatez que se vai repercutir na forma como interage com os outros: com um distanciamento frio, objectivo, educado, e um trato pragmático, ponderado, sintetizador. Apesar da minha obsessiva avaliação permanente de tudo o que me rodeia, são parcos os exemplos de quem concilie no espírito humildade e inacessibilidade. O meu pai consegue-o, fruto de uma tremenda sensatez que não possuo e julgo vir jamais a possuir, fruto dum condicionalismo e vivência radicalmente opostos dos seus.

Mas apesar da intolerância de que me fui revestindo em relação à simpatia da minha Mãe – que conversa com empregadas nos hotéis e se comove por tudo e por nada, tão subserviente à vontade do meu Pai, onde perdeu a autonomia há tantos anos – esta empatia exerceu em mim influência preponderante, concedo. E foi a dicotomia dos dois extremos de direcções opostas que os meus pais encerram que acabou por formar em mim carácter frio e impenetrável, segregador e dissidente em relação aos demais, e comocionado, protector e possessivo com os meus. Em defesa do rigor científico e analítico do meu pensamento, devo conceder que a petulância, megalomania e narcisismo que me assolam provêm de circunstâncias diversas destas, na minha opinião indissociáveis do esforço insípido e duma languidez que agora procuro combater, e que nada têm a ver com os meus pais. Importante nesta fase é realçar a importância do ascendente da minha Mãe na humanização do meu espírito, incutindo-lhe alguma benignidade misericordiosa e uma afectividade inabalável tão própria dos povos latinos, e a conduta irrepreensível do meu Pai, ídolo maior, porém inatingível, detentor duma hombridade que me guia e que tento, ingratamente, adaptar aos dias em que vivemos, estranhos aos seus, e à minha própria índole, mimada, facilitada, hedonista, tão longe do seu método, tão díspare do seu espírito de trabalho, rígida disciplina e aquela auto-contenção que só possuem os que, com sacrifício pessoal, subiram a pulso na vida.