'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






19/04/2010

Que violência é essa que cheira a Ambre Solaire?

Que Violência É Essa Que Cheira A Ambre Solaire?

Parte II de III

(continuação)

O Novo perseguia, com o olhar, mas não a pneumática mulher que deliciara a trivial atenção do Outro.

- Há algo de terrificamente belo e ao mesmo tempo invulgarmente honesto na sombra de quem passa. Não há no mundo maior lealdade que a da sombra. Cúmplice, assiste-te no maior pecado, e soberba observa-te na mais maviosa bondade. Creio que sempre me pareceu a alma de quem persegue, despida de vanglórias. É verdadeiramente límpida. É como aquele momento único, sabes quando uma mulher, perfeitamente alinhada contigo, se estica e inclina a cabeça para trás para te chegar aos lábios? É quando lhe consegues ver os olhos semicerrarem e as pupilas dilatando-se em entrega, com o sangue subindo-lhe à face, corando-a de uma lascívia tímida que a embaraça, e mesmo antes de fechares os olhos sentes os corpos renderem-se ao peso do outro, e deixas de perceber como é que se mantêm em pé, e a última coisa que te lembras é pensar que o corpo dela parece estar dobrado para trás, como suspensa no ar, e absorves toda aquela fragilidade, tão crente em ti (!), e morres por um bocadinho?, sabes isso, sabes? Esse momento antes do beijo é beleza pura. A mesma beleza que encontras na sombra de quem passa.

Abandonei qualquer reserva para, incivil, me virar completamente na cadeira e observar o ar perturbado do mais Novo. O ritmo cavalgante atropelava-lhe as fiéis palavras. Humedecia os lábios a cada paragem e as sobrancelhas acompanhavam-lhe o desafogo. A sua expressão procurava algum assentimento do Outro, e o Outro... fitava-me com carregado cariz! E com razão. Dei um gole no café, olhei para as horas, estiquei as pernas, mexi no telefone, procurei o empregado, ouvi o Outro continuar:

- Continuas a ouvir Madchester, estou a ver... – Sim, diz o Novo, e continuou a falar, mas eu já não o ouvi porque só pensava no quão idiota tem um homem que ser para emitir tão desbotada interlocução a tudo a que o mais Novo tinha dito. Quão desprezíveis são esses encurtados de imaginação que sempre tentam etiquetar os outros, justificando-lhes as fantasias, circunscrevendo-os a alguma corrente. Quão moderada será a sua percepção, a ponto de o não deixar ver mais do que a palidez do meramente visível? Quão breves serão os seus conceitos que lhe não permitam abarcar tais paixões?

(continua)

15/04/2010

- Shoot him again.


- What for?


- Because his soul is still dancing.

02/04/2010

CONTO

Que violência é essa que cheira a Ambre Solaire?

Parte III de III

(continuação)

- Sou demasiadamente orgulhoso para achar que alguma mulher me ame; seria supor que ela sabe quem eu sou. Também me custa a crer que ame alguém; tal implicaria descobrir alguém da minha condição – lamuriava o mais Novo. O Outro baixou os olhos, endureceu a expressão, quis falar, manteve-se calado, disse por fim, - Suponho que seja verdade o que se diz no filme, a solidão é mesmo subestimada...

- Sem dúvida, e os olhos do mais Novo voltam a brilhar. E, doutro lado, as relações, as promessas, os compromissos, são sobrestimados. A sua erma condição é o relativismo. Na verdade, nada mais vale que o seu valor, e este é sempre aferido em relação a algo, sendo que tudo pode valer menos ou mais que tudo, comparativamente. Mas claro que não estou a falar de inconsequência, não me tomes por esses niilistas radicais que desdenham qualquer significação! Estou a falar da pueril imutabilidade de uma perturbação de alma que julgo eterna. Falo do meu inconformismo à razoabilidade do mero companheirismo, essa auto-imposta falácia colectiva, (e bem sabes que a crença força, quase que obriga a realização!). Claro que quem nunca sentiu o divino considera o mundano o requinte do ser. E provavelmente até sentiria essa sublimidade a que aspiro como inquietante e falsa.

O Outro sorri. Finge compreender.

- E a incredibilidade desses laços que nos unem, homem e mulher... – continua o Novo – mais não podem ser caracterizados senão como tragicamente melindrosos. Casamento? – ri-se – Só os gays e os religiosos é que se querem casar actualmente! Vês a ironia? Essa efemeridade latejante repercute-se até na economia e no modelo de trabalho. O indivíduo tem agora de ser móvel e adaptável. Os clássicos contratos de trabalho ad aeterno são raridades e a precariedade instalou-se. Nada dura, o instante rege. E o instante é egoísta. Uma relação só o é hoje, um compromisso apenas existe para trás e uma promessa só dura enquanto não se quebrar.

- Saber viver é saber adaptar-se..., riposta o Outro.

- Há uma bestialização concepcional que nos é inabdicável, por defeito. Somos todos filhos de um bando de bárbaros. E eu sou o filho, sou o herdeiro, de nada em particular. Apenas da minha obsessão em dissidiar. Ás vezes acordo de manhã só para abrir a janela e sentir a vida lá fora. Volto a dormir, a azáfama dos carros e das buzinas tranquiliza-me. Acordo depois do almoço dos outros, passeio despido pela casa, fumo e como. Depois deito-me e volto ao mundo real. – O Outro olha-o, estupefacto – Talvez a evolução da espécie passe por aí, pela marginalidade. Lá tenho tempo para existir.

- E existes mesmo? Parece-me que lhe foges..., diz o Outro, enquanto um sorriso mortiço lhe acentua a vulgaridade.

- Que culpa tenho, se a quebrantada intocabilidade de um afecto me agita o espírito e me amotina a razão?

- Parece-me que tu é que sobrestimas o que é simples e natural, insistiu o Outro, ostentando a sua pertinência.

- De forma alguma! Pelo contrário, redu-lo à descomplexidade com que Caeiro o interpretava. – Responde o Novo. Depois foge com o olhar, semicerra as pálpebras como se tentasse ler o longe. – Ou seja, concretizando-o em coisas simples: como a memória da violência daquele momento (que para mim assume a forma de uma brutidão desconcertante)... daquele momento perdido pelo Tempo e que já só relembro através da violenta sinestesia que combina o bege da areia e o azul do mar mais forte que o do céu, com o cheiro daquela pele impregnada de protector solar barato roubado num alisuper qualquer...

Subitamente, um estrépito ruído – duma forma sonora de kitsch que surpreenderia o próprio Gogol – perturba meia esplanada. O Outro atende. Frases curtas, desmotivadas. Tenho de ir, a patroa manda, apertos de mão, até qualquer dia, e nos olhos do mais Novo, que ficou sentado por mais um pouco, descobri aquele olhar com que os velhos ficam ao ouvir as histórias pujantes de vida dos netos. Demorei-me também. Até que o vi partir, primeiro nitidamente, com os olhos entretidos varrendo a esplanada, e os passos leves galgando a calçada; depois desvanecendo-se vagarosamente no meio da amotinada correnteza de gente que se dirigia para o Metro, naquele final de tarde.

Passados uns meses, vi o Outro num centro comercial num domingo de manhã, quando ia comprar uma barra de wax. Quase que o não reconhecia. Será a qualidade do que é vulgar susceptível de ser acentuada? Passeava-se em pegadas lentas, dominicais, com a camisa aos quadrados para fora das calças e o Tissot enfeitando-lhe o pulso, perseguido em pesaroso magnetismo pela mulher de cabelo escuro, sobrancelhas arranjadas e finas, feições sofridas e largas ancas; boa parideira, presume-se. Não há contacto, nem conversa. Não há nada nela que lhe peça água. Nem ele tem água para dar.

Quanto ao mais Novo, nunca mais o vi. Acho que quem souber povoar a sua solidão, saberá isolar-se entre as gentes.

Vejo-o às vezes. Sempre sozinho, sentado, fumando, sorrindo. O olhar remoto, apartada presença. É um homem só, um único inferno.

Vejo-o muitas vezes. Tantas, que até podia ser eu.

FIM