'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






23/08/2008

Triologia do Desalento - Parte I

'Man is least himself when he talks in his own person. Give him a mask, and he will tell you the truth.' Oscar Wilde

Espelhos: um irresistível magnetismo atrai-me para a amaldiçoada admiração. O reflexo da imensidão de mim condensados num corpo. O convergir do génio humano num bocado de matéria – mas que admirável construção! Foco-me errática e obsessivamente na riqueza de pormenores. Desejo blasfemicamente a multiplicação de mim. Regojizo-me com a ideia de ser eu, e de o ser para o resto da vida. Mas quando me apercebo que um espelho junto à cama me leva a um extâse tóxico, quer esteja sozinho ou acompanhado, pela assistência de mim próprio a toda a magnitude que em mim encontro, sou atropelado em reluzente epifania pela parábola de Narciso, aquele que depois de rejeitar Eco, a sua ninfa, por maldição vive o resto da vida apaixonado pelo seu próprio reflexo na água, acabando por se suicidar afogando-se.

Conheço a minha demência; saboreio-a. Sento-me e escrevo sobre ela. Fecho a porta e rodo a chave enferrujada da casa do Cercal onde repouso nestes dias do mês mais quente do ano para os demais, deprimente e paranóico para mim. Odeio Agosto. Na sala ouço a voz cortante da Júlia Pinheiro. Televisão, a droga dos felizes e conformados. Coitada dela, que assiste, enroscada num lençol fresco e amarrotado sobre um sofá antigo, de tipo senhorial, aos programas da hora em que o sol é demasiado perigoso para se estar na praia. É uma bébé entretida com um brinquedo colorido. Displicente e paternal, despertou-me um sorriso. Já vai longe a histérica gritaria de ontem, com as acusações gastas e o ouvi-la cabisbaixo, escondendo a indiferença, fingindo um afecto que não tem espaço em mim. No meu egocentrismo, estou demasiado dedicado aos meus exorcismos para pensar em mais alguma coisa. Leio, fumo, surfo. Penso e às vezes escrevo. Sabe-me bem estar aqui. Um homem pode ser feliz com qualquer mulher, desde que não a ame.

Sei agora que ela - o meu quarto de hotel - com todos os seus sonhos e aspirações, desejos e ânsias - ela que merecia ser um lar e não um poiso - afigura-se perante mim de forma tão aprazível quanto desprezível. Adoro-a, a minha amiga, com quem falo das coisas que entende, a quem invejo o pragmatismo e simplitude. Arruma a minha desarrumação, propicia-me todas as noites deitar-me em lençóis esticados e sacudidos, cozinha o jantar sob um lume hipnotizante e, parece-me que quase por magia, levanta e lava os pratos enquanto continuo letargicamente sentado à mesa, abraçado a um balão ardente que me alimenta a alma. E é, mais que isto, muito mais, aquela com quem sonho, não com ela mas através dela, por via da radiante semelhança do seu corpo e cabelo. Até o tom de voz que já só relembro remotamente. Quando me deito a seu lado viajo para aquele espaço-tempo diferente, tão rigorosamente delineado quanto irremediavelmente irreversível, de uma pureza e ternura que já morreram, e com elas toda a minha capacidade de amar. Não a amo. Não amo ninguém. Amo-a às escuras, por trás, em silêncio. Só a amo na minha loucura, na clonagem doentia da minha percepção deturpada.

Em época de redenção evito Narciso e o seu destino. Normalizar, aprender a ser como os demais, imitá-los, admirá-los, é trilho e meta para mim. Talvez assim consiga um dia sentir de novo o fascínio doutrora... pelos outros, por uma mulher. O homem a quem ninguém agrada é incomparavelmente mais infeliz do que aquele que não agrada a ninguém. Porque ao nos agradarmos demasiado, acabamos por estabelecer parâmetros sobrehumanos ao nosso próprio agrado. E viveremos enclausurados numa torre de intransigente exigência, cercados por um fosso de tormentosas comparações. Presos no momento, onde é tão mais fácil adulterar um Passado imperfeito, convencendo-nos da sua perfeição, do que planear um Futuro alternativo.


'Quem não estiver familiarizado com o sublime, sente o sublime como inquietante e falso.'

Friedrich Nietzsche, in A Vontade de Poder

13/08/2008

'É preferível ser violento, se houver violência nos nossos corações, do que vestir o manto da não-violência para encobrir a impotência.'

07/08/2008

London Calling


Não escrevo - não tenho tempo - a época estival que agora atravessamos ocupa-me suficientemente para não precisar do exorcismo recorrente da escrita. Mas as 2h05m que separam Heathrow International da cidade da minha vida sopram-me a saudade das palavras e da sua efemerização, da incursão até à esterilização da criação artística onde ser o melhor é aspiração natural para os novos pobres deste colégio interno.

Londres do céu carregado e da chuva miudinha; do fog matinal. Londres berço da História Moderna; monumental. Das paredes de tijolo e das grades baixinhas. Do Underground e da repetitiva 'Please mind the gap between the train and the platform'. Da insubestimável polidez das pessoas e do asseio das ruas. Do civismo e da amabilidade. Da minuciosa atenção aos pormenores e do metódico perfeccionismo. Da pacatez do Hyde Park e do frenesim da Oxford Street. Do misticismo do Thames e da boémia Picadilly Circus. Do classissismo das gravatas às riscas e do bom gosto do tweed. Da imperatividade dos botões de punho, dos colarinhos esticados e do anti-italianismo. Da sobriedade das cores e do padrão prince of wales. Da fenomenal heterogeneidade étnica e da enriquecedora pluriculturalidade. Do liberalismo e da abertura de mentalidades.

Londres do turismo, onde milhares seguem em procissões, de mapa na mão e câmara a tiracolo, de monumento em monumento, em verdadeira obsessão-compulsão, um mar de gente afunilando em todos os pontos relevantes anunciados pelos mapas das suas travel agencies, com horários religiosamente estipulados. Não foi essa Londres que conheci. Certamente que também parei e contemplei a Tower Bridge, vi o Big Ben e tirei uma foto no Buckingham Palace. Mas, felizmente, viajando com os meus pais, conhecedores de Londres e críticos acérrimos do mainstream, extremamente aversos a confusões e detentores de uma certa e abençoada inflexibilidade, pude gastar o meu tempo em vez de o consumir de acordo com os roteiros turístico-comerciais, e respirar a cidade e sentir o pulsar do povo que desde sempre mais me fascinou. Londres do orgulho e altivez. Da intransigência e da prepotência. Das transversais da Fleed Street e da City of Westminster. Dos musicais e das estreias mundiais. Da Fullham Broadway e dos brandies em Hampstead.

Londres das mulheres, da caramelosa suavidade da brancura idílica das suas peles, da formosa castidade que fugazmente deixam transparecer, do porte altivo, dos saltos altos e do andar majestático, do flutuar pincipesco, dos narizinhos arrebitados e das orelhas que, furtivas, tentam às vezes espreitar - para meu deleite - por detrás de um cabelo de boneca perfeitamente assente, mas tão solto que, com a mais leve brisa, parece ganhar vida própria. Ahh! como sinto agora que este é um sítio terrível para se estar com os pais, que vontade de as encontrar num bar e poder sussurar-lhes ao ouvido toda a sua magnitude, e depois sentir toda a sua fragilidade nos meus braços, o seu peso no meu colo, a sua vontade na minha, dominante.

Minucioso, ou maníaco, com o olhar triunfantemente errático, observando and getting breathtaked, de rua em rua, esquina em esquina, foi então que, como colhido por um toiro ou atropelado por um rooftop bus, na primeira segunda feira de Agosto, nessa cidade estrangeira de cor cinzenta e ar bucólico, vi aqueles ombros carnudos que amarrecavam... que amarrecavam com o peso de dois peitos cheios e descaídos; ombros camuflados por um cabelo loiro e fino sobre as costas, tão perfeita na sua incomparável imperfeição, tão segura na sua radiosa enfermidade, tão adulta na sua jorrosa infantilidade. Desperta o meu lado lobantuniano e aniquila a tendência saramaguiana que há em mim. Que vontade de escrever e descrever pormenores! Desorientado com tão demoníaca semelhança, paro em plena Queens Gate e sou engolido por um mar de gente enquanto a perco de vista. Um arrepio abraça-me quando o inexorável medo do sonho que se avizinha horas mais tarde, quando me deitar, me arrebata como um terrível presságio. Foi assim que, nessa noite, depois de os meus pais subirem para o quarto, saí sozinho – it's everything ok, sir? - yes, I just got issues with my sleep-. Entro num taxi – to Convent Gardner, please – deambulo até convergir num pub e – a large beer, please – subo até Leicester Square onde um club que promete num cartaz diversão 'american style' até altas horas chama por mim. Lá dentro um punk, que pela conversa me apercebi ser um mentecapto nacionalista, me toca num braço pois, pelos vistos, o polo da Fred Perrys que eu vestia é em Inglaterra símbolo daqueles que aclamam a injustificável superioridade da raça(?) branca. Estou sozinho e não estou com paciência nem arrisco debochar, por mais subtil que fosse, com um grupo de cabeças rapadas com cristas e coletes de cabedal, com o cheiro de dias de suor e cerveja, furados nas narinas e sobrolhos. Solto um cínico - yeah man, white power rules... - enquanto me afasto em direcção aos gent rooms. Lá dentro oiço o snifar dentro duma das cabinas e... brrrrrr... saio o mais depressa possível dali, em direcção ao bar, desalentado e sozinho, onde me dirijo a uma barmaid com ar de lésbica dominadora, corte de cabelo à militar, loira, alargadores nos lóbulos e trejeitos masculinos – james martin, double, one icecube - what happened, are you allright mate? - inquere-me com um sorriso quente - Ain't nothing wrong, ain't nothing right, although, I'm just here 'cause other way I'd be laying awake all night. À minha volta grupos de bifes e bifas histéricos saltitam ao som de 'you make a grown man cry...', e enquanto sorvo o meu whisky e vejo o meu reflexo no espelho por trás das garrafas do bar, penso quantas vezes terão Darwin, Newton, Shakespeare, Dickens, ou até o inevitável Pessoa deambulado melancolicamente nos mesmos sítios por onde agora me passeio, quantas ideias lhes terão surgido, quantas vezes terão sido apelidados de loucos, e quantas pessoas, barmaides, porteiros ou meros traunseuntes terão morrido na ignorância da interacção com espíritos tão imortais. Sinto o peso da herança londrina.

Pedem-me para desligar o computador. Presumo que estejamos a chegar a Lisboa. Um magnífico pôr-do-sol pinta as nuvens de um rosa suave. Ao longe já pareço ver o meu mar. Publico no blog mais tarde.