'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






30/12/2009

' Que força é essa, que força é essa que trazes nos braços,

Que só te serve para obedecer?

Que só te manda obedecer...

Que força é essa, amigo? '

29/12/2009

'Monkey whore showed the pregnant girl the door
For something that she saw,
Underneath the bed...

She said it's the devil that she saw,
In the mirror that she swore at.
Smashed into pieces'

O michael rose, os rude boys, e o tempo em que ele e mais uns quantos oligopolizavam o sistema sonoro do clio

22/12/2009

Psycho Killer (Talking Heads, 1977; também a versão de Peter Doherty, Glastonbury 2009)

Dentre fumo jorrando dos sorrisos, correntes de ar passando por janelas que insistem em se não fechar – lembrando o quão pior se estaria lá fora – e aquecedores dum passado recente, perdura o serão das conversas cruzadas, dos cinzeiros equilibrados no colo, dos risos soltos – disléxicos – aqui e ali, e dos remoques futebolísticos na sinergia sensorial pós-clássico, o benfica é o benfica: ‘e agora não sei quem acredita em Jesus e a conversão é uma coisa admirável’;

e é entre a nitidez do hortinha que me encanta com histórias brilhantemente descomplexas, e entre as cabeças amotinadas à minha frente na cama sobrelotada que agora faz de sofá que a velha televisão de 4 canais pouco visíveis e escassamente audíveis me coage a atenção pelo sublime do que o não pode deixar de ser, pela graça e pelo acordo,

no meio de um reality show das massas atulhado de aspirantes a estrelas, novos-pobres do colégio interno das almas que preferem a vespertina busca num centro comercial (gastando o que ganharam – ao custo usurário da sua vida – no eterno ciclo da hipnoterapia repetitiva preconizada por Aldous Huxley) a um dia de sol com uma boa companhia, numa praia inóspita, inabdicável. E no meio desta próspera e respeitável classe do meio emergente, afoita por reconhecimento e ‘vivendas’ com piscinas, aparece a diferença e a semelhança, que me atenua – mas só por um momento – a insurrecta perspectiva de uma dissidência maior.

Sei que nem todas podem ser Karen Blixens, mas gosto de pensar que sim, que pelo menos são mais do que as que pensamos. E não consigo ficar alheio à diferença e à semelhança. Sou parcial, talvez Musil tenha razão, e ‘um homem que busque a verdade torna-se sábio; um homem que pretenda dar rédea solta à sua subjectividade torna-se, talvez, escritor’.


21/12/2009

'Primeiro levaram os comunistas, e eu calei-me, porque não era comunista.
Depois levaram os sociais-democratas, e eu nada disse, porque não era social-democrata.
Levaram os sindicalistas e os homossexuais, e eu não protestei, porque não era sindicalista nem homossexual.
Quando levaram os judeus e os deficientes, eu também não protestei, porque não era judeu nem deficiente.
Quando me levaram, já não havia quem protestasse.'

Martin Niemöller

Who the fuck is fcp ?


17/12/2009

15/12/2009

09/12/2009

The U.S. vs John Lennon



download link: http://thepiratebay.org/torrent/3609010/The.U.S.vs.John.Lennon.LiMiTED.DVDRip.XviD-LMG

30/11/2009

Eu vivo em sociedade. Eu vivo em sociedade.
Eu vivo em sociedade. Eu vivo em sociedade.
Eu vivo em sociedade. Eu vivo em sociedade.
Eu vivo em sociedade. Eu vivo em sociedade.

27/11/2009

An empty taxi drew up outside 10 Downing Street and Mr. Attlee got out of it.

24/11/2009

' Then he went to San Francisco and spent a year in outer space,

with a sweet little san fransciscan girl '

19/11/2009

Dear Leaders,

Please legalize weed, for this reasons:


11/11/2009

Ad Absurdum

(...)
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
(...)

Álvaro de Campos

09/11/2009

05/11/2009

One pill makes you LARGE.

And one pill makes you small.

And the one's that your mother gives you, don't do anything at all.



Go
ask Alice, when she's ten feet tall.

27/10/2009

"É inegável o gosto que dá pensar sozinho. É um acto individual, tal como o é nascer e morrer." C. Drummond A.

Somos a meia idade da vida na Terra. Quatro mil milhões de anos passaram, quatro mil milhões passarão. Surgimos – e é no termo surgir que mora a metafísica do meu crer e do meu querer – como procariontes, seres unicelulares; milhões de anos de fotossíntese e a multicelularidade metaformiza-nos em insectos gigantes e crustráceos. Procurámos alimento e conforto na água e peixes fomos; portento da evolução, voltámos à terra, anfíbios; com a graça dos anos, reptilizámo-nos. Mas o calor do ventre era titânico apelo, e prodigiosamente irrompemos mamíferos, primatas, homo sapiens actual. Como seremos nos momentos imediatamente antecedentes à explosão solar, daqui a quatro biliões de anos? O nosso estágio biológico é um milímetro nos quilómetros de evolução. Mas talvez a nossa divindade assente no facto de tornarmos a nossa insignificância especial.
E tu enfias-te numa máquina para ires trabalhar bronzeada segunda-feira?
Pensa.

O legado que carregamos vai além da nossa compreensão, derradeiros exemplares duma gloriosa espécie, praguejando um planeta outrora equilibrado. Curiosa, esta espécie dominou ecossistemas, floras e faunas, elementos e outer space. Talvez também seja essa a nossa divindade – então residiria justamente na nossa insignificância singular. Mais não somos senão um todo, ao longo dos tempos: a formidável evolução de 4 mil milhões de anos. Sozinho, o João Silva, engenheiro, casado, não é nada; apenas um grão de areia no deserto da imemoridade. E no entanto foi pai de três filhos, mimou-os, ensinou-lhes princípios. “–Ensinou-os a sobreviver, tal como a leoa às crias”, dir-me-ás. Mas o João Silva não os ensinou somente a caçar ou trabalhar. Ensinou-lhes a rectidão, a bondade e a equidade. E é precisamente isso que revela o desejo de preservação de uma espécie per si, e não por qualquer subjectividade para quaisquer dos seus elementos (ou por quaisquer instintos). É a isso que me refiro quando digo que tornamos a nossa insignificância especial, única, divina: a espécie humana faz por significar a sua reducente existência.
E tu defines-te como português ou jurista ou médico, benfiquista, liberal ou conservador, muçulmano ou cristão, socialista, monárquico, anarca ou heterossexual?
Pensa.

Relativizando, relativizo-me e te. Relativizo-nos e vos. Parece-me que é essa a cura da angústia de não saber, e o elixir da despreocupação, por não pretender saber. Nada é mau, comparativamente, tal como nada é bom, confrontadamente. Vivendo de um vestígio, exacerbando insensibilidades e distanciando-me do que é dos homens, indeliberadamente asfixio o elemento divinizante a que me referia atrás. Pintando de vulgar a existência, escondendo-me do intento de aqui estarmos e perdendo-me do sentido, inexisto. Tal como se a insignificância existencial, possível fosse, ainda se tornasse mais opaca.
Sei agora que se não servirmos a nossa brevidade de amor, conhecimento e criação, fartando-a (à brevidade) de desejos e impulsos, deleitando-a de prazeres, deliciando a nossa vontade, então nem breve seremos, mas apenas lacunas no livro brancacento e eterno do tempo.
E eu preocupo-me com o “trato sucessivo” de já nem sei bem de quê?
Pensa.
Penso.

25/10/2009

Abaixo o COMUMNISMO!

22/10/2009

mário david, PSD. mário david, eurodeputado, vice-presidente no PP Europeu. mário david é o passado, é o homem doutro tempo, que não merece sequer a honra duma maiúscula. mário david é um imbecil. Era-o e é, rosto da pior escória que nos calamita o poder: os conservadores morais, oponentes da ruptura niilista. Gosto de me pensar pacifista, moderado, temperado; mas ver este ignorante nos media convidando Saramago - projecção moderna do país, um dos poucos que nos faz orgulhar de a ele pertencermos - a renunciar à nacionalidade lusitana, desperta-me ódio visceral, tão pretérito a mim quanto descabido ao meu conforto quotidiano, talqual André Breton a De Gaulle, ou Andreas Baader à sociedade alemã do pós-guerra.
O JOVEM SÍRIO
Que linda que está a princesa Salomé esta noite.
O PAJEM DE HERODIAS
Olhai para a Lua. Que estranho aspecto ela tem! dir-se-ia uma mulher erguendo-se de um túmulo. parece uma mulher morta. Dir-se-ia que anda á procura de mortos.
O JOVEM SÍRIO
Tem um aspecto muito estranho. Parece uma princesinha com um véu amarelo e pés de prata. Parece uma princesa cujos pés são como duas pombas brancas. dir-se-ia que está a dançar.
O PAJEM DE HERODIAS
É como uma mulher morta. caminha muito lentamente.
(...)
O JOVEM SÍRIO
Que pálida está a princesa! Nunca a vi tão pálida. Parece o reflexo de uma rosa branca num espelho de prata.


in
Salomé, Oscar Wilde

14/10/2009

Legendado por mim. Agora já não há desculpas.

07/10/2009



















Para um vespertino e noctívago, as manhãs são tão cerradas como as noites para um camponês. E foi nesta última, uma hora antes do normal acordar para as aulas, que despertado fui por uma enfurecida turba de vizinhos que se iravam por entre os três pisos da garagem. Tinham-me assaltado o carro. E a outros sete. Mercedes, audis, os fora-da-lei ‘sabiam ao que iam’ (talvez eu sempre quisesse ter utilizado esta expressão, ou talvez intrinsecamente esconda um feitiço – do francês fétiche – pelo vulgar, ou talvez se trate de uma aposta com um amigo). O mesmo m.o. (muito Criminal Minds?), vidro de trás partido, porta-luvas, consolas e bagagens remexidos.

Desço ao -3 de mocassins, calças de ganga e a t-shirt que mais tinha à mão: alças. Pareço um John Mclain imigrado na Suíça. O meu primeiro contacto é com o meu velhaco vizinho de baixo que, piscando-me o olho em desleal cumplicidade, me diz que vem aí a polícia, e que eu deveria tirar as ilegalidades do carro… Rio-me, espirituoso. Ele sabe que eu sei que ele sabe que já foram inúmeras as vezes que, tardas horas, me viu deliciar-me com especiarias arábicas à janela. Aceno levemente, como quem desvaloriza um descabimento, e afasto-me. Por prudência, obedeço-lhe, discreto. Duas ou três ganzinhas, reservas…

Vejo o meu Pai entre uma juíza de roupão e o sr. engenheiro da crise de meia-idade e da namorada de 28. Procuro-a – à namorada de 28 – por entre a vizinhança, na esperança de que também tivesse descido com alguma túnica exótica ou uma camisa de dormir licenciosa (que mal tem? se todos me afirmam como púbere em relação a tudo o mais, por que o não posso ser também em relação à libidinosidade?). Mas não desceu. O meu Pai vem ter comigo e, em pronta consolação, lembra-me que são apenas bens materiais, que logo à noite compramos tudo novo, que o seguro paga o vidro, que não vale a pena perdermos a paciência com aborrecimentos tão insignificantes como este. Pela primeira vez desde que me arranquei aos frescos, solitários lençóis, sinto-me verdadeiramente lúcido e fito directamente o meu Pai. Involuntário, acabara de subscrever Séneca – o estóico renunciador e contemplador das realidades simples, contemporâneo da transição pagã-cristã – ou Brahmananda Saraswati – o guru do tantra e da meditação transcendental, cujos ensinamentos me ajudam a relativizar tudo o que me envolve –. Que desmedida admiração lhe devo.

Todavia, não é uma aflição material que me atemoriza. Coisas são coisas, que interessam para além daquilo para que servem? O que me mantém estático, a alguns metros dos carros e dos vidros espirrados pelo chão, é a minha peculiar fobia. Não consigo deixar de imaginar quem é que terá estado dentro do meu carro. Se tiver sido um bando de pretos ou mitras, toscos e desorganizados, ou uma família de ciganos, com os seus sotaques engraçados, ou mesmo uma quadrilha de ucranianos, com o método que só o frio pode impor, tudo bem. Mas a imagem que insiste em me ocupar a psique é a de um arrumador de carros, decrépito e moribundo, a remexer-me nas coisas. Então, simulado, assim que o meu Pai se afasta (para não pensar que sou mais desassisado do que o que de facto sou) pergunto a um vizinho o que me embaraça mas que não consigo desprezar: ‘– Então, isto terá sido obra de quem? Não me parece que tenha sido coisa de drogados, o que é que acha?’. Claro que não tinham sido drogados, o grau de organização é por demais evidente. Mas a irracionalidade de uma psicopatologia impele-me a repetir a pergunta ao mais graduado dos agentes, assim que chegam ao local. A mesma resposta. Rio. Rio agora. Mas o riso aliviado é um riso amarelo. Só me emergem as palavras de Churchill, ‘uma piada é uma coisa muito séria’.

05/10/2009

'Rebelo da Silva era um romântico. Em 1848 - estava Karl Marx a publicar O Manifesto Comunista - Rebelo da Silva escrevia sobre as trombetas e as charamelas da praça de 'Salvaterra, os veludos do conde dos Arcos a cavalo, a dama que num camarote escondia as rosas vivíssimas do rosto, o touro negro que investe e espera que o corpo ferido do conde lhe entre nos cornos, a dor do velho marquês de Marialvas, que vinga a morte do filho, e o rei D. José que toma uma decisão. Disso Rebelo da Silva escreveu um texto célebre: A Última Corrida de Touros em Salvaterra. Claro que não foi a última, era conversa de romântico... Herdeiro do Manifesto de Marx, o Bloco de Esquerda fez um programa eleitoral em que diz o que lhe repugnam as touradas. O BE tem uma única câmara e, essa, é a de Salvaterra de Magos. É no Ribatejo, a sua festa maior é dos Toiros e do Fandango, e os seus doces mais conhecidos são os barretes. Qual o espectáculo preferido da presidente da vila, Ana Cristina Ribeiro, que é do BE? Touradas. Há quem veja contradição nisto. Eu prefiro ver a confirmação do provérbio quioco: "As águias voam alto mas têm de baixar para comer." Isto é, Ana Ribeiro só é, nisto, o que o BE há de ser, no resto, quando for preciso.'

Ferreira Fernandes in Diário de Notícias, 5 Outubro 2009

29/09/2009


Eu só quero ver o instante
Em que chegas à MANIF,
No teu Armani flamejante
(Qual vermelha passadeira)
Em vermelho redundante
Que empalidece a bandeira.

Vou ficar a ver-te mudo
Gritando slogans na rua
Pela divisão da riqueza;
Enquanto nos gabinetes de veludo
O poder treme e recua
Com medo da tua beleza.

Então dou-te uma toilette,
Soneto de alta costura,
A mais chique maravilha;
Para me sentir perdoado
Por não poder estar a teu lado
Quando tomares a Bastilha

21/09/2009

O Meu Voto Anti-sectário (e não prosélito!) - explicado a todos que não o entendem, como se tivéssemos 15 anos...

Tenho sentido uma extrema dificuldade em reconhecer inteligência aos argumentos da direita. É algo que, se lhes é idiossincrático, me é estigmaticamente incontornável. Simplesmente absorveu-me a ausência de verdade lógica dos seus argumentos; tornou-se demasiado comprometedora para quem se não deixa lograr por sofismas nem acredita no ilusionismo demagógico pós-moderno das democracias ocidentais.

Mas cabe analisar o pensamento direitista em duas vertentes: a económica, e a dos valores.

Fácil se torna, a qualquer pensador, criticar o raciocínio tardo de um direitista, no campo valorativo. Afigura-se-me como um exercício pouco estimulante (é como contra-argumentar com quem acredita na Criação, do Antigo Testamento, em desprimor da Evolução, de Darwin).
Não pretendendo subestimar o pensamento da direita em relação aos valores, é inafastável a qualificação do mesmo como uma cavilosa inércia à mudança e uma tremenda indolência per progresso (não económico; mas enquanto espécie, civilização). A manutenção do presente, e nalguns casos, o restabelecimento do passado, mais não podem ser considerados do que perfeitamente anti-naturas. O pai da dialéctica, Heraclito de Éfeso, ditou há séculos atrás um dos mandamentos da Lógica: ‘A única constante do mundo é a mudança’. Quem contra ela reage apenas poderá ter, creio, uma das duas justificações: ou a prossecução de interesses ocultos pela falácia da retrogradação em nome duma moral e costumes obsoletos; ou age em perfeita nescidade conceptual, dotado duma admirável ausência metafísica, em plena nulidade circunspectante.

Todavia, há circunstâncias envolventes do conservadorismo que, em parte, o desculpabilizam: este já foi explicado cientificamente pela ocorrência de fenómenos neurológicos, que podem ser traduzidos por uma vulgar ‘tacanhez’. Tais reacções químicas no córtex manifestam-se, do meu ponto de vista, em inúmeras situações da vida, como a acomodação de uma mulher ao parceiro que a trata mal, a resignação do empregado ao trabalho que detesta, o conformismo de um obeso com a sua morfologia. Acredito que somente o pensamento livre das algemas da tradição e do dogma pode inverter tal patologia. Mas, fruto da propensão da sociedade moderna para a alienação e entretenimento, imagino como difícil a concretização dessa meditação. Tetrahidrocanabidol, Dietilamida do Ácido Lisérgico ou até Salvia Divinorum ajudam; mas, se a sua fruição for unicamente orientada sob a égide ditatorial do entretenimento, pode ter o efeito contrário, o aprofundamento da alienação pelo que nos rodeia.

O conformismo é um poderoso aliado do conservadorismo. Daí que eu defenda, como substructio do progresso da nossa espécie, o choque geracional. Aquele que busca a aprovação do Pai (entenda-se a sociedade, os professores, os pais em estrito senso, o padre), procurando conservar os hábitos do seu tempo passado, aceitando o que lhe é ensinado por via dessa arma trágica que é a tradição, aceitando o que lhe é ensinado sem o questionar, obsta à volubilidade da sua própria comunidade, abrandando o próprio tempo, promovendo a limitude.

A política actual deve versar, fundamentalmente, sobre economia. Orçamento e gestão pública. As liberdades civis – aborto, legalização de todas as drogas, eutanásia, casamento e adopção gay, prostituição, et cetera – devem ser totalmente liberalizadas (trata-se de uma mera questão de tempo, um processo volitivo de aceitação colectiva de ruptura com a moral de outras Eras – niilismo nietzscheziano) de forma a que a governação se dedique exclusivamente à gestão de recursos e regulação do Mercado, atingindo assim a comunidade o estatuto supremo da liberdade, cumprindo a verdadeira definição de democracia, com cidadãos tolerantes, informados e socialmente responsáveis.
É precisamente na economia que os argumentos da direita ganham força. Economicamente falando, tudo é mais prático e directo. Aqui liberais, neoliberais, keynesianos, neoconservadores, socialistas, nada têm a ver com Moral ou Religião. Tudo gira em torno de teorias económicas e modelos de desenvolvimento. Tal como na matemática, tudo é mais sincero.
É, penso, perfeitamente inequívoco que o motor de uma economia deva assentar na iniciativa privada – desde logo pela natureza intrínseca ao homem (o egotismo) pelo que a obtenção de lucro e a ascensão na hierarquia social como seu corolário são a melhor motivação para o investimento e a consequente geração de riqueza num determinado sistema, consubstanciando este o melhor modelo de desenvolvimento económico.
Afastadas que estão neste início de século, portanto, as teorias absolutistas de ingerência estatal, os totalitarismos económicos e as operações públicas invasivas que caracterizaram o comunismo e o fascismo (e as figuras híbridas que lhes foram subsequentes), foquemo-nos na única via que julgo viável, como vimos acima, para o desenvolvimento económico: a Economia de Mercado.
Partindo da aceitação deste sistema, é aqui que surgem as principais clivagens entre a direita moderna e a esquerda moderna. Clara Ferreira Alves disse há alguns anos que ‘actualmente, ser de esquerda é ser contra os lobbies’. E é precisamente aqui a fronteira entre as duas visões. Enquanto que a esquerda moderna, aceitando a Economia de Mercado como modelo de desenvolvimento, defende contudo uma regulação estatal, através do balizamento de comportamentos económicos, estabelecendo algumas barreiras de forma a impedir o capitalismo selvagem ou desenfreado, a direita, por seu lado, toma a defesa de uma total desregulação do mercado, deixando-o a funcionar per si, pelas forças que nele se movem. Respeitando o entimema, não é preciso ser-se Adam Smith para rapidamente se reconhecer que as mais temíveis forças do mercado são os lobbies (grupos de pressão relativamente aos seus interesses), que desequilibram por completo a justiça do mercado, podendo até dominá-lo por absoluto, se não houver uma contra-força a mediar (o Estado).

Para melhor explicitar esta perspectiva, pensemos num exemplo localizado: uma empresa. É certo que gera riqueza, empregos, impostos e segurança. Não obstante, o seu principal (muitas vezes o único) objectivo é o lucro. Tal advém do anteriormente referido egoísmo humano – e que deve ser aceite como intrínseco, pois é tão natural como a libido, o sentimento de posse, o amor ou a sede. Os empreendedores privados (v.g. as entidades patronais), em última instância, estão focados no lucro. Não na comunidade, nos trabalhadores, nas suas famílias, na segurança dos seus empregos. Tal deve não deve ser negado e é necessário que seja aceite como condição do ser humano.

Com a aplicação deste caso pontual a uma grande escala – ao Mercado – entende-se qual seria o resultado de uma total desregulação do mesmo: a concentração em poucos dos recursos de muitos (e o principal recurso do mundo é a produtividade do trabalho humano). Provavelmente os interesses privados, focados no ganho, acabariam por gradualmente dessagrar uma das maiores conquistas da Humanidade – o Estado Social. Porque o objectivo dos privados será sempre somente o lucro. A direita moderna assenta no conformismo do Homem à sua própria condição egocêntrica, inobservando desigualdades e injustiças geradas pelas suas condutas. Defino-o como uma desresponsabilização suprema das nossas acções enquanto indivíduos que se movem numa comunidade, como se, por via de uma maquiavélica avidez de lucro, pudéssemos artificiosamente subterfugir ao reflexo nos outros dos nossos actos. A orientação do Estado – composto por tantas vontades e orientações diversas entre si – é um garante de sensatez e moderação na economia.

Nascido e desenvolvido na Europa, este Welfare State é o mais proeminente sucesso da nossa humanidade: o cuidar do próximo; encerra, também, o expoente máximo da cidadania, a noção de que a cada indivíduo são indissociáveis um conjunto de direitos e deveres; garante também a intervenção estatal nos efeitos mais flagrantes da pobreza, como a fome e a indigência; promove a regulação de sectores essenciais como o Direito do Trabalho ou a Segurança Social; afiança que a res publica providenciará pela igualdade de oportunidades entre todos, através da Educação Pública e do Sistema Nacional de Saúde; assegura a promoção da concorrência leal nos mercados e o zelo por um sistema judicial célere e independente. São estas as características que nos diferenciam dos EUA, e são estes adiantamentos civilizacionais que nos cumprem defender de cada vez que exercemos o direito de voto.

Sou enfatuadamente apartidário: afasto-me – a bem do rigor intelectual – de qualquer tipo de corporativismo, designadamente dos partidos políticos. Tal como o meu Pai. De formação socialista, nunca se filiou nem fidelizou em nenhum partido, debruçando-se actualmente sobre certos movimentos defensores da democracia participativa. E eu, que já fui filiado nos dois partidos da direita, vou agora votar no Bloco. Conto com a vitória do PS, mas considero fundamental a não obtenção da maioria absoluta. O poder corrompe; os lobbies proliferam mais facilmente se não houver pluripartidarismo na tomada de decisões. Politicamente, sou um moderado. Talvez me reveja actualmente numa esquerda centrista. Considero os radicalismos (políticos) perigosos. Mas acho que a consolidação do Bloco de Esquerda como terceira força política na Assembleia da República seria uma eficaz arma contra as pressões dos grandes grupos económicos, adjudicações duvidosas, derrapagens orçamentais e falta de transparência na gestão dos dinheiros públicos.

17/09/2009

Sentada no desclassificado Metro
Sem classes, divisões ou cor,
Estava a Rosa, entre o brasileiro e o preto
Primorosa, lendo Os Contos de Maldoror.

Igualdade, marca moderna,
Entre tantas, distinta aquela Rosa.
Discreta e morna, vasta soberba
Como a aurora, despertando-me a prosa.

Por que me olhas, evasiva, ó Rosa?
Eu sou Fôlego, submergindo da
ennui
Que colora o vagão cinzento, taciturno,
Condenação dos que andam por aqui.

Vincam-se-lhe dentes brancos nos lábios vivos,
Tez cadavérica com os olhos lívidos;
O cabelo corre-lhe distraído entre os dedos
Rosa és tentação, és os meus ímpetos e medos.

Não me encantes, ó Rosa, sendo cúmplice e conivente;
Não vês – para além do enlameio – que sou apenas sarcasmo?
Não busco o Gräfenberg, nem espero, sou corpo ausente…
Origem do meu crime: farto-me – foge-me o entusiasmo!

Acho que de início me engano e confundo
Impulsivamente, precipita-se-me um ditame,
Par ne pas cherchez dans l’être profond
Une que je ne poux pas penser, Ma Dame…

Errata ao teu blog, MJ: esta é que é a minha personagem preferida de todos os filmes - Cecilia


31/08/2009

'Femmes Damnées', Charles Baudelaire (excerto)



(tradução +/- livre)

Teremos acaso cometido alguma acção estranha?
Explica, se és capaz, o meu transtorno e o meu horror
Tremo de medo quando me dizes: 'Meu anjo'
E ainda assim sinto minha boca ir em busca da tua.

Não me olhes mais assim, ó tu, meu pensamento!
Tu que eu amo para sempre, minha eleita...
Mesmo que fosses um embuste à minha alma
E a própria origem da minha perdição!

-E quem diante do amor ousa falar do inferno?
Maldito para sempre o sonhador inútil!
Que primeiramente quis, por sua estupidez,
Enfrentando um problema insolúvel e fútil,
Às delicias do amor juntar a honestidade!

O que deseja unir, num acordo místico,
O dia com a noite, o frio com a flama,
Jamais aquecerá o seu corpo paralítico
Com aquele rubro sol que se chama Amor!

Aqui somente é lícito servir-se a um único mestre.
Mas Hipólita, de súbito gritou, em enorme aflição:
'-Sinto em meu ser abrir-se um abismo,
E este abismo é enfim meu Coração!

Ardente como um vulcão, mais fundo que a tormenta,
Nada aplacará este monstro dentro de mim!
E nunca há-de saciar a sede de Eumênide
Que o queimará, archote em punho, até ao fim.

Que os véus de nossa alcova nos ocultem do mundo,
E que o cansaço dê repouso a tais agruras!
Quero extinguir-me no teu vórtice profundo
E no teu seio achar a paz das sepulturas...'

-Descei! Descei, ó lamentáveis vítimas!
Descei por onde o fogo arde em clarões eternos!
Mergulhai neste abismo em que todos os crimes,
São flagelados por um vento oriundo dos infernos!

Jamais um raio clareará vossas cavernas,
E pelas fendas os miasmas delirantes
Infiltrar-se-ão brilhando, como lanternas,
Penetrando-vos os corpos de odores nauseantes!

Cumpri o vosso destino, almas desordenadas,
E fugi do infinito que trazeis em vós.

-Hipólita, meu coração, que me dizes destas coisas?
Compreendes agora quão pueril é oferecer
O holocausto sagrado das tuas rosas em botão
Aos ventos lá de fora que as podem esmorecer?

-Hipólita, meu amor, vira para aqui a tua cara
És a minha alma e o meu coração, o meu todo e a minha metade
Mostra-me esse olhar cheio do azul dos céus,
Deixa-me contemplar esse bálsamo bem-vindo;
Dos prazeres mais obscuros eu erguerei os véus
E adormecer-te-ei num sonho infindo...

16/07/2009

09/07/2009

Parte II (continuação)

E com companheira (e com movimentos reflexos, despidos de algo mais que o tacto, desacompanhados pelo palpitar apressado da paixão)

me mantenho – entre a sua pele desrugada e o seu corpo imberbe que me infligem um sentimento de invasão, incorrecção, deslocação – na descrença esperançosa de que um acto com a magnitude trágica do Amor me atordoasse de sentimento e ciúme, auspiciando o próximo acto seu!

Que me atordoasse como…
como o próximo momento em que a visse, no passeio do outro lado, nem que fosse num lampejo – que uma indolência irreflectida não permitiu tornar-se num olhar prolongado, venerado – mas que helenizou a finada rua com uma luz bruxuleante que me sombreava os passos tremeluzentes, enlevados pela descarga de pesar que refutava intensamente aquilo de que me convenci, anos atrás.

Ah que cor! – mistura doces tons de amarelos com o dourado divino –, que caminhar, que flutuantes movimentos a deslocam!
Mas o segredo da minha veneração esconde-se na forma como reflecte a luz. Qualquer tipo de iluminação. Delacroix vergar-se-ia; Sir Edward John Poynter venerá-la-ia; eu estranho-a.

E retorno sempre, desbotado, ao recanto confortavelmente inerte onde a viveza primitiva se desvaneceu, e lá me demoro, embaído com rotinas, companheiras e carícias brandas, quietações e canabiáceas várias…

embora raramente, (com o sobressalto da morte súbita!), me veja atiçado ao devaneio meigo e meloso dum sentir conturbado, ao ler no telemóvel a sua braquigrafia infantil no formato de sms… adormecendo mais tarde, arrebatado de tanto sentir, com os dedos lânguidos tocando o ameno ecrã, e a imaginação fecunda percorrendo os trilhos frugais do seu terno aroma.

03/07/2009

'Se tu és dono dela e ela é dona de ti
Se tens vergonha dela e ela também de ti
Então és dono dela e ela é dona de ti

E cada amigo dela faz nascer o mal que há em ti

Se tens vergonha do que fazem só os dois
Se tens vergonha do que fazem só os dois
De cada amigo dela vem-te o medo que a façam depois

Se o que tu queres dela ela te diz que é só de ti
Se o que tu queres dela ela te diz que é só de ti
Então o que ela quer tu crês que também podes querer para ti'

B-Fachada - O Ciúme e a Vergonha
http://www.myspace.com/bfachada

28/06/2009

26/06/2009


Jarvis Cocker (from Pulp) invaded the stage at the 1996 BRIT Awards in a spur of the moment protest against Michael Jackson's performance. Jackson performed surrounded by children and a rabbi, while making 'Christ-like' poses and performing his then-recent hit, 'Earth Song'.

Jarvis Cocker performed an impromptu stage invasion in protest. In the ensuing confusion, as security attempted to eject Cocker from the stage, three child performers received minor injuries.

Cocker was later detained and interviewed by the police on suspicion of assault. He was subsequently released without charge.

Jarvis said: 'My actions were a form of protest at the way Michael Jackson sees himself as some kind of Christ-like figure with the power of healing...'

17/06/2009

Parte I

E naquela manhã, ninguém morreu. Que ela soubesse, pelo menos. Nem no dia anterior, nem no que se lhe seguiu. Os crisântemos que carregava na mão murchavam como a sua fisionomia. A cada dia menos bonita, a cada dia mais velha, no rotineiro circular do mundo e das horas; e a cada ano que passava lhe pesava o cansaço na inversa proporção da esperança que lhe fugia.
Naquele cemitério de vazios e saudades, numa manhã em que o vento seco levantava a terra das campas que, lúgubre e aquosa, se lhe colava aos lábios húmidos, espreitou por entre dois mausoléus humildes e pareceu-lhe ver-me, sentado, prostrado, escrevendo, esmorecendo.

Como me lembro de a ver passar, na monotonia dos dias, carregando os seus crisântemos e as suas rosas e as suas mágoas pesando-lhe aos ombros. Caminhava com a ligeireza de quem quer passar entre a sentença do destino, com a audácia de quem foge a um sentimento, com a culpa de quem não sabe o que quer.

Danificada como eu, transtornada como eu.
Voltasse atrás e dir-lhe-ia, como a tantas outras, que lhe diria coisa alguma. Porque as palavras limitam-nos. Fossilizam o que é apenas efémero no não-destinado eterno.

A cada dia que passava espreitava como quem não acredita, por entre dois mausoléus de dor; e a cada dia mais bonita, e a cada dia a sua graça era maior.
E eu sonhava – porque tocar é realizar, e a realidade desaponta-me com a brevidade de um soluço – então sonhava. E às vezes atingia aquele anseio quase canibalístico e tortuoso que me não deixa sequer pensar.

Alheada como eu, mortificada como eu. Passa com a malha sombria que lhe dissipa a silhueta e com a mofina saia que lhe esconde a libido, mas lhe denuncia as pernas brancas e finas com a doce penugem escura, e com os calcanhares que tendem para dentro e lhe patenteiam um caminhar amoroso.
As minhas desusadas atracções revelam-se-me uma vez mais à medida que o órgão vomero-nasal lhe rapta as feromonas fugidias.

Inexplicável, incontornável. A congruência reside no insólito, e já tantas vez o expus às minhas repetidas amigas – quais cromos para troca! – parametrizadas pelo vulgar e forjadas pelo profano convencional, que agora mais se me assemelha a uma prelecção ponderada e artificial. Mas não o é! E, de tão farto que estou de depilações equivocadas, dietas malogradas, corpos postiços e trabalhados, cabelos pintados (e o kitsch que só pela profunda definição não lhe vale o privilégio de se dizer mais nada), tantos são os dias que, esticando-me, me tento agarrar ao que resta da minha identificação socio-cultural a este lugar…

As minhas desculpas. Os meus pêsames. Mas ela é a idealização do que me é edénico. Irreal como a vida, virtuosa como o sonho e fervente como só um sentimento pode ser.

Ela não existe.
Só existe na medida do que eu gosto, e do que não encontro. O romantismo é coisa pretérita na sociedade pragmaticamente descartável dos dias correntes. O objectivismo com que se analisa um sentimento, e a tibiez com que se pesa os prós e contras de uma emoção, substituíram os grandes actos dramáticos por Amor – que morreu, asfixiado, no vácuo moderno do companheirismo sexual.

09/06/2009

08/06/2009

'Já não há astro, hoje a lua é nova. Não há céu, nem estrelas, nem nuvens, nem chuva, nem vento onde dança a pena que te relembra do que é existir. Não vou estar, nem aqui nem em lado algum, para ninguém. Creio no que não se deveria querer e guardo por lá um amontoado de sonhos, esticados sobre o sol quente de Junho, que os destila. A minha visão ganha dicrotismo no resultado, porque é tarde (2:26 am), porque padeço dessa condição incurável que me entoja, e porque nem tenho resposta, nem a surpresa de um sim. Tudo deveria ser correspondente à nossa idealização; nada deveria ser o contrário disso. Face à ânsia, entrizo-me. É só mais um outro dia, mais uma outra noite, é mais um pouco do sempre de tudo, só mais um pouco de tudo, sempre…
não me incomoda esperar e ficar à espera consciencializa-me.
Neste teu prefácio vejo a minha história.'

Frank G. in Diaporese.blogspot.com

02/06/2009

De nihilo nihil

‘Conheço muito bem os homens para ignorar que muitas vezes o ofendido perdoa, mas o ofensor não perdoa jamais.’ Rousseau

Adulaste-me ao ver-me descer na fermentação da escarpada desnivelação do nosso pensamento, emprestando ao que tocava o meu triunfo supremo? Pois por mais que me forçasse, esquecendo a baixa tolerância ao esforço, afectivo ou não, essa perpetuação assegura-se-me tão patética quanto a dúzia ou a meia dúzia. Existem dezenas, centenas, milhares, por aí fora. Não reconheço a legitimidade de uma unidade popular, reduzida à contagem de ovos numa mercearia qualquer. E agora vejo o turpor rebolando com a vulgaridade do anti-esteticismo, como o som dos Buraca som sistema (que uma força inata não me permite escrever com k) atravessando a sala de óculos escuros e um enorme logo da Quiksilver estampado com a incandescência do fluorescente mau gosto, magnetizador da minha estupefacção, prendendo-me o olhar longe do livro que me ocupa as mãos. Incivil, observo o casal que por mim passa até ao cúmulo da insolência. Ela, estudante universitária daquele rechonchudinho portuguesmente saudável, de cabelo amaciado e sorriso simples, desloca-se invisível na sua vulgaridade cuja virtude é ser sóbria, ao lado dum anormal que parece saído dum pódio da ‘Volta A Portugal Em Bicicleta’. No iPod, Richard Ashcroft repete-me algo que imprime uma justiça poética ao momento. E ele, alto, magro, com barba forte, daquela que é feita diariamente e ainda assim não esconde a cinzentude da cara, com grossos pêlos pretos nos finos braços, alardeando uns calções logo no primeiro dia de calor do ano, e com esse tipo de ténis de montanhismo timberland's ou merrel's que os meus conterrâneos insistem em adorar. Nada há de mais profundamente anti-estético do que ténis. Só talvez o som dos Buraca Som Sistema. Impelindo o cadáver pela lavoura de sensibilidades do CCB, não conseguia esconder aquele labreguismo de quem nasceu em Portalegre, Penafiel ou algo do género (salve a vénia ao Conde d’Abranhos) e com olhos torpes desafiava perfidamente o meu olhar estacado, nessa tarde de dia 11 de Março de 2009. E agora, ao relê-lo, embrumado no crepúsculo que me municia de temperança, embusteiramente distanciado por estas poucas horas que me acentuam a bipolaridade arrogância-remorso, logo me diluo na definição última de todo o meu intelecto e tradução inequívoca do meu transtorno narcísico – toda a minha Frustração. De nihilo nihil. Multatuli disse que todas as virtudes têm irmãs ilegítimas que desonram a família. E eu – desprimor de tudo quanto todos pensam de mim – mais não sou do que o strictissimae sensu da Frustração... e tudo daria em seu desfavor (até a fertilidade do pensamento ou a coroa da razão), para sentir a normalidade indulgente; e enfraquecer-me, perdoando; e purificar-me, esquecendo. Mas é esta a minha limitude: a constância repetitiva da derrota e da sua irremediabilidade. Sei que o perdão valer-me-ia apenas a honra do eterno ódio. Minto-me e fustigo-me com o ensino socrático segundo o qual aquela formosura que me colora os sonhos é uma tirania de curta duração. Anseio pelo tempo quente e abafado em que as sinapses no cortéx são menos frequentes e abunda a inibição neurotransmissora, onde não reste um sopro dessa perturbação de ânimo com nome de mulher que me é predilecção suprema, fausta, imprudente dos sentidos. Serei maior depois.

29/05/2009

'O kitsch contemporâneo é uma das grandes invenções da pátria. Podíamos exportá-lo se valesse alguma coisa nos mercados internacionais. (...)
Parecemos todos personagens de Gogol, que agora faz anos e que escreveu sobre isto no modo desbocado e genial que lhe conhecem os que o leram. Gogol não escreveu apenas sobre a Rússia, nem sobre os funcionários e burocratas da Rússia. Nem satirizou o governo, nem inventou o realismo, nem tentou reescrever uma "Divina Comédia" completando unicamente o Inferno com Almas Mortas. (...) Gogol foi o autor que melhor retratou essas manifestações do espírito humano reconduzidas a uma palavra que podemos chamar em português "vulgaridade" e que em russo toma o nome de pochlost. Uma espécie de kitsch parecido com o sentido histórico enunciado por Milan Kundera. Seres bizarros iguais a todos nós movem-se, comem e dormem, pensam e circulam na monotonia do pochlost.
Tradução adjectiva: barato, factício, banal, desenxabido, pomposo, de mau gosto; ou inferior, desprezível, pechisbeque, vil, lantejoula, de pacotilha. Como diz Nabokov, este é um mundo de falsos valores que podemos detectar sem precisar de uma especial sagacidade.
(...)
Recoberto pela vulgaridade da "emoção", o pochlost esconde a realidade com o manto diáfano da fantasia. A realidade e a verdade não interessam. Nem são rentáveis. Sobejam o sentimento e a indignação, que cativam o vulgo profano. A falta que nos faz um lúcido descendente de Eça de Queiroz que detecte e descreva esta gente.'

28/05/2009

Siegfried Sassoon - Suicide in the Trenches (1918)

'E um profundo e tediento desdém por todos quantos trabalham para a humanidade, por todos quantos se batem pela pátria e dão a sua vida para que a civilização continue...

...um desdém cheio de tédio por eles, que desconhecem que a única realidade para cada um é a sua própria alma, e o resto - o mundo exterior e os outros - um pesadelo inestético, como um resultado nos sonhos de uma indigestão de espírito.

A minha aversão pelo esforço excita-se até ao horror quase gesticulante perante todas as formas de esforço violento. E a guerra, o trabalho produtivo e enérgico, o auxílio aos outros... tudo isto não me parece mais do que o produto de um impudor,

e perante a realidade suprema da minha alma, tudo o que é útil e exterior me sabe a frívolo e trivial ante a soberana e pura grandeza dos meus mais originais e frequentes sonhos. Esses, para mim, são mais reais.'


Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa

27/05/2009

16/05/2009




'Ontem eu vi um tipo na Avenida,
Depois da bebida,
Perdeu-se em Lisboa.
Ontem, mas bem no centro da cidade,
Bateu-lhe a saudade,
O homem chorava Angola...
Dizia: Táxi, Táxi, vai me leva p'ra Luanda,
Faz buéda tempo que eu não vejo a minha banda
Táxi, Táxi, quero ver minhas praias
Nas pedras da ilha zambóia e takaya'





'Remember, remember the 5th of November,
The Gunpowder Treason and Plot,
I know of no reason
Why the Gunpowder Treason
Should ever be forgot.

Guy Fawkes, Guy Fawkes, t'was his intent
To blow up the King and Parli'ment.
Three-score barrels of powder below
To prove old England's overthrow;

By God's mercy he was catch'd.
With a dark lantern and burning match.
Holloa boys, holloa boys, let the bells ring.
Holloa boys, holloa boys, God save the King!'

14/05/2009

06/05/2009

Duma magreza pomposa, descarnação de quem não vive para comer. Desavergonhada anorexia! – Ufana anoréctica passeando a sua opulenta escassez por entre os prostrados do alimento. Se soubesse como me seduz o cuidado por entre os grandes rabos e mamas dessa praia da vulgaridade.

– ‘A Perestrelo está com um bronze… Olha aquele biquíni!’.

E eu – tolo desalinhado, entre o céu e a duna, a mortalha e a sopa, envolvido por amigos que fazem filtros e despretensiosos comentários – não vejo a Perestrelo, nem as mamas uns metros abaixo, nem as coxas de ginásio da amiga da namorada do amigo; apenas me deixo cuidar pelo atrevimento dessa magreza no país dos enchidos e do cozido à portuguesa, pelo descabimento da brancura num país de sol, pelo pejo desse riso num país tão grosseiro, pelo andar distraído no país das aparências…

Duma brancura enferma, mas casta. Jactanciosa palidez! Ostenta-a por entre as reproduções aborígenes na trivialidade desse bar onde reina a congeneração e a resignação do que é e ao que é plebeu (a ordinariedade é circular como um calendário, monótona como as conversas suburbanas, contagiosa como a varicela num teatro cheio de miúdos).

Caminha vagarosa e majestática por entre a desatenção geral. Mas a minha está bem presa pelo freio, com as rédeas da soberba, por tudo o que não é saboreado pela boca insulsa, insípida das massas dissaboridas.

Pudera,

– não fosse o embaraço que os actuais laços já me trazem, e a inegável imaturidade para algo mais –

apreciá-la-ia sentado na cama onde dormia, deleitando-me da mesma forma como me deleitaria, assombrado de devoção, ao ver a minha rosa dormir – não fosse a sujidade da idade e a conspurcação do tempo –; e desenhá-la-ia, pintá-la-ia como Otto Dix; esculpi-la-ia como Rodin; dedicar-lhe-ia odes e poemas que falassem de azuis profundos, mitologias bíblicas, chuvas funestas; escrever-lhe-ia uma tragédia onde fosse Naiáde e Nereida, Afrodite e Alcmena… Para apenas reviver, desfalecendo, aquela ténue (e tremendamente volúvel) sensação que nos seda da pungente dor inalienável à vida e da molesta monotonia que nos tempera os dias malquistados – distracção tão imerecida como a Arte – mas que é crime da nossa classe, fulgor deste vanguardismo helénico, indumentado por uma languidez overdósica e adornado pela divagação tão fértil quão absurda, infamemente oprobriosa por jamais saciada.

05/05/2009

Maria Luís Serras Pereira, muy ilustre descendente de Nuno Álvares Pereira, Santo Condestável --- 01:26

http://tv1.rtp.pt/noticias/?headline=20&visual=9&tm=6&t=O-principal-accionista-do-BPP-receia-a-liquidacao-do-Banco.rtp&article=217871

01/05/2009


In the cold, coldest of nights
The fire I light, to warm my bones
I've had enough, of the dreadful cold
And from the flames, appears Salome

I stand before her amazed
As she dances and demands
The head of John The Baptist on a plate

In the morning, shaken and disturbed
From under soft white fur
I see the dust in the morning bright sets the room alive
And by the telly appears Salome

I stand before her amazed
As she dances and demands
The head of Isidora Duncan on a plate
Oh, It's Salome
Oh, It's Salome

In the cold, coldest of nights
The fire I light, to warm my bones
I've had enough, of the dreadful cold
And from the flames appears Salome

I stand before her amazed
As she dances and demands
The head of any bastard on a plate

29/04/2009

Poder da Minoria

Imaginemos que certa assembleia se compõe de 55 membros e que apenas 54 efectivamente votam. Seria assim fácil demonstrar em que situação aconteceria o empate, dentro do critério de dois terços. Denominamos X como o número de votantes do grupo maior e Y o número componente do grupo menor (grupos que somados perfazerão 54). Ora, para que ocorra um empate, deveremos ter:

1/3 X = 2/3 Y

Obteremos, desse modo, uma equação com duas incógnitas, sabendo que a soma das incógnitas x+y é igual a 54. É, por conseguinte, lógica e matematicamente possível o seguinte sistema:

1/3 X = 2/3 Y

x + y = 54

que, depois de resolvido, nos apresenta X como 36 e Y como 18, resultado que representa matematicamente um empate dentro do critério dos 2/3. Não há, assim sendo, dúvidas que um voto decide, mesmo que o grupo menor varie de 0 a 18!

24/04/2009

'La Liberté Guidant Le Peuple', Eugéne Delacroix,
1830, huile sur toile, Musée du Louvre, Paris.

Eugéne Delacroix, o mais sugestivo dos pintores, odiava multidões, apavorava-se com o turpor revolucionário da época a que emprestou a sua existência, e abominava qualquer tipo de euforia popular. Todavia criou a única pintura revolucionária a ser catedratizada como uma obra de arte.
Nas suas palavras: (tradução livre) 'O maior inimigo da pintura é a cinzentude. De facto, não existem luzes ou sombras. Há apenas uma cor massiva para todos e em cada objecto, reflectindo-se diferentemente em cada ângulo dos mesmos. (...) Sem audácia, sem extrema audácia, não há beleza. Urge ousar para ser único. Não há regras para as grandes almas: as regras são para aqueles que meritoriamente têm um talento que pôde ser adquirido - e não para os génios... Os efeitos mais sublimes não são resultados de licenças pictóricas. Por exemplo, a aparência inacabada dos trabalhos de Rembrandt ou o exagero de Rubbens. Os homens medíocres nunca o ousariam fazer; eles nunca se ultrapassam a eles mesmos. O método não pode ser regra para tudo, apenas pode guiar um homem banal até certo ponto.'




onde v é a velocidade da luz e m a massa da onda, c a intensidade da onda e t o preciso instante temporal em que rebenta, x o espaço e alfa é a sua personalidade - o seu movimento linear (vulgo 'balanço' entre massa e velocidade)... cada alfa profetiza a imprevisibilidade do aleatório (!), em milhoes de sistemas de matrizes como:


14/04/2009

zane lowe sessions


Do you know me? I don't think so!
You romanticize the dark and gloomy past
Trying to escape from the underclass
You darkened the bright and beautiful day
You're breaking my heart in every way
And tell me everything is dandy and fine
You're no friend of mine

I took you in and you stole from me
But you still got everything I need
You're walking so tall, you're looking so mean
You're walking so tall, you're looking so mean
But you tell me everything is dandy and fine
You're no friend of mine

Do you know me? I don't think so!
Do you know me? I don't think so!
You romanticize the dark and gloomy past
Trying to escape from the upper class
You darkened the bright and beautiful day
You're fucking up my head in every way
And tell me everything's dandy and fine

09/04/2009

Embalado pela demente inconveniência, não me recordo de alguma vez ter sabido parar, submerso na febril hilaridade dos loucos a quem os sábios narcísicos epitetaram de génios. Porquê parar? Porquê a cura, a terapia e a imitação? Porquê a redenção, se assim me amo, e se assim sou amado, e se - apesar de não amar - nada me asseverar que, vulgar fosse, comum amaria?
Não páro porque não me vulgarizarão na simpatia ou sensatez - não serei o vaso encantado da minha rosa. Qualquer cena é obscena no espectáculo de horrores desse promíscuo folclore em que não alinho e cujo breve visionamento me metamorfizou num céptico, metaforicamente porventura o maior cliché de todos.
A normalidade é a ausência da alma. Essa rendição à convenção é o enterro do individualismo, padronização da virtude desavinda; e a similitude da espécie vaticina uma certa sensibilidade colectiva (o que significa sensibilidade alguma).
Cada homem morre quando deixa de ser criança, e os que não deixam são as temerárias formigas de rumo oposto ao carreiro de matilhas ordeiradas nos supermercados ou na consuetudinária fila do Lux - todos os corpos aspirando à irresolução de campas, caixões e mausoléus iguais, com relvas e flores indistintas...
Mas livres são as almas! E a sensibilidade é o velcro despreendido dos que nunca cresceram (ou não souberam parar). É nessa libertação estigmatizante dos sentidos que se percebe que quando todo o mundo é grosseiro e coxo, a elegância e o belo porte se tornam a Enfermidade. Quando o feio impera, o belo é Monstruoso.




'Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinhiero monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda delas.'
Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"

06/04/2009

'Woman in the Wilderness'

Woman in the Wilderness, Alphonse Mucha, 1923.
Oil on Canvas, Art Nouveau.
Mucha Museum, Praga.

01/04/2009

Estado de graça

Ao reparar que a gravidade não afecta de igual modo todas as mulheres, deixei a atenção sumir-se por entre esses movimentos tão vacilantes quão firmes, deslumbrado com tanta naturalidade de ser. Já são tantos os anos em que aceitei o dogma da naturalidade ser uma pose – talvez a mais pretensiosa de todas – que agora a reticência ensombra-me sempre que a admiro, como um beato ao ler Marx, e abalando-me a crença, inundando-me de redefinições, para de imediato me resfriar em cepticismo, encarando-a como o bluff exímio. Nada há que me fascine mais em tudo o que existe do que a naturalidade de se ser. Algo perfeito só pode ser estudado, imitado, trabalhado à exaustão, traindo a sua própria designação, como tudo o que tem a graça humana. Mas às vezes iludo-me e sorrio.

Deixo os anos colorirem-se com a sinceridade dum sopro de tudo o que É, breve e real. Nunca penso muito nos que ofendo, nem como os ofendi. Sempre mo perdoaram; nunca o questionei. O porquê era redutor... Mas quantas manhãs, na coruta da terna anamnese, revivo o abraço absolvente, naquela cama da batalha, depois das crueldades despojadas sobre si. Como o pôde perdoar, ou como esquecerei que o perdoou?
Mesmo tendo perdido a graça, caindo em desgraça, vivo sempre em estado de graça.

26/03/2009

One Man = One Vote ?

A Despersonificação da Virgem

Na baía do irresoluto, inopinadamente, encontrei-me feliz. Lugar comum de mim, do que figuro, ou ao alheio represento. Já faz tanto tempo. – Quanto tempo faz? – Um certo pudor impede-me de gritá-lo ao mundo, mas beijo a minha Mãe cada vez que por ela passo, telefono aos mais ine­­­­­­­­sperados, emprestando-lhes banalidades e até sorri a um estranho na rua. Ah se eu soubesse antes que os deuses pagãos caíram aos pés dos homens póstumos à sua Era, mas que o molde divinatório perduraria pela obscuridade dos séculos, chegando ao racionalismo em que hoje vivemos… E que a queda da Virgem não mais significa do que isso, porque a susceptibilidade do homem amar a Virgem viverá para sempre. A adoração não se centra no objecto, mas na capacidade de adorar. A devoção não é definição do devotado, mas do devoto. O sentimento não começa ou acaba na pessoa objectivada, o sentimento é um todo mutável e infinito na essência de quem o objectiva.
A musa não é condição do poeta, apenas descoberta da sensibilidade que lhe faculta a ninfalização do que lhe é envolvente.

11/03/2009

obg pela produção, de qq forma...

SHAMELESS - adjective;
1. lacking any sense of shame: immodest; audacious.
2. insensible to disgrace.
3. showing no shame.

Related forms:
shame-less, adverb
shame-ness, noun

Synonyms:
1. brazen, indecent, impudent, bold, unabashed, unashamed. 2. hardened, unprincipled, corrupt.

Antonyms:
1. modest.

09/03/2009

O Fastidioso do Actual

Oh virtude que comigo se deita…
Claustro pendente sobre a pirâmide invertida do meu discernimento.
Copiada, falsificada, contrafeita.
Não as ames – nunca as ames –aborrece-me o sentimento.

Cruz que é ser maior do que os homens
Raça daqueles que se acham aquilo que pensam ser
Estirpe inviolada, castamente exigente
Dos que em pé, estóicos, se arrogam de viver

Corre, Lázaro! Sente, goza, ama!
Deita-te sempre mais leve na cama.
Parte, torce, cala, chama.
Nunca mintas a um estranho
(e a quem conheces engana!)

Queres a verdade? Exige-ma.
(Que escrevo de forma compulsiva,
Que me surgem poemas como quem espirra,
E epifanias! no epicentro do mundanismo,
Vendo os outros pela desconsideração do egotismo?)

Então lê-me, eufórica: grita-me essa passagem!
De Vida, Verdade, Poesia e Arte
Mergulha na teatralidade e deixa-me admirar-te
Finge a naturalidade que te é ausente
Para ilusão do apático, enfadonho presente...
Cala-te!, harmoniosa, deixa-me degustar o que dizes
Prova-me, intrépida, que só mereço amar actrizes.

04/03/2009

Nick Cave & The Bad Seeds - Dig, Lazarus, Dig!

Mão Morta - Gnoma

26/02/2009

18/02/2009

Tempo

Um pássaro amarelo voa e alto morre.
Cai com a graciosidade dos anjos para um chão torpe, devorado pela azia infame do tempo. A abruptidão seca desse instante fatal golpeia-me com a monstruosidade da contida descrição que lhe devo, despejada na apatia de um ponto final.

O tempo perece-nos e leva-nos. Não por vicissitude, não por capricho, só porque sim. Porque existe, porque passa; e, distraído, nunca espera. O tempo tira-nos o tempo. Rouba-nos o que já tivemos: a fábula acabou e deixa-se de acreditar em livros. Esses ombros que te descaem são o marasmo da idade que não esqueces, e essa barriga onde adormeço é o depósito dos teus anos dourados. O teu longo cabelo dourado está fino e as mamas renderam-se à gravidade quando as ancas se sacrificaram à feridade dos partos. Mas nada que não esperássemos: o corpo é, desde o início, o condenado de se ser. O teu prejuízo foi o espírito, porque calados, graves e maduros perdemos a impulsividade estúpida da juventude, que nos prejudicava mas que incendiava aquele quinhão da alma que não arde por dinheiro ou estatuto, respeitabilidade ou estabilidade.

A expectação dessa era esticava até ao lado longínquo do devaneio.

Agora, escondendo o meu alvoroço atrás da distância, não me deslumbra a sabedoria das mulheres de rua nem as rugas da prova. Expeço a temperança que fabulas e a desapiedada gravidade com que me imitas, copiando a índole grisalha de que esperava que me libertasses. Porque o que quero são as palpitações e as improvidências! E aquele chorar balançante. E as tuas dúvidas insensatas.
Vivo por esse fôlego de imbecilidade infantil que já não to sinto, hesitante e tremente como um caloiro, farto e fértil como os campos verdes de Maio.

Espreito, mas só por um instante. Baixo-me, recolho-me na posição fetal onde me agasalho de ternura, depois de indecorosamente cumprir o priapismo com que pareço acordar todas as manhãs. Corro parado e toco a redenção com as pontas dos dedos, mas são os meus medos lhe ditam a impertinência, pela irrecorrível sentença da irreversibilidade do tempo – que não devolve o branco da candura. Tempo gasto, vasto, nefasto. Fosse de pendência monetária e pouparia toda a minha vida por uma máquina que me retornasse àquele momento antes do lúgubre ponto de não-retorno que nos raptou a alvura!
E agora já me não interessa pagar o resgate.

Sim, o Tempo. O mesmo que nos tira o tempo, e nos perece e leva, também nos conserva nessas masmorras do mesmo tempo que são a memória.

Nestes termos e pelos mais de Direito, pede-se a sentença de Vossa Excelência. O vosso douto despacho de fls. que me não interessam vaticina a usurpação de tudo que nos conhece. E a morte é o tempo, que nos cobiça, e nos esquecerá; e esquecidos ainda em vida, quando pesando aos netos, enlevados, ocupados, fingimos a calma e a resignação ao inconformável. Na última paragem desempenhamos o papel de uma vida ao transmitir a harmoniosa sensação de plenitude aos que agora iniciam a viagem.
E recordados somos por uma década, velados por uma semana, chorados por um dia.

O tempo que cobriu a distância deste tempo é a ponte desfeita que nos cativa na eterna margem dos que esqueceram aonde vai dar o caminho.
E aqui, nos despojos do desencontro, através do enfado da absolvente busca e da inanidade que desmorona e trai, mas que é consolo maior (por dissipada a esperança), a putrefacção que o tempo nos legou converteu a dor em macio autismo da minh’alma, não pensando, amando, sentindo, intuindo.