'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






15/07/2008

14/07/2008

Amor Perro


Dissertação sobre o diletantismo

O problema do diletantismo e da boémia reside no facto de nunca se parar. Entre copos e jantares, festas e gente ebriamente eufórica, calor e tardes na praia não há espaço para pensar. A mente ocupada vagueia pelas vivências triviais como uma terapia a que ela própria se impõe. Quando se pára pensa-se na vida, por onde se foi e por onde se teria ido. A morte da bezerra é aqui tranquilizante eufemismo. Pensar não dói. Pensar faz doer. Pensar reboca lentamente uma alma pesada encravada no pretérito imperfeito do conjuntivo. Pensar conduz-nos ao resígnio epopeico do romeiro: '-Ninguém!', e à sua epifânica glória.

Ensaio sobre o ódio

O ódio, pelo ódio existe. Sartre teoriza que existe apenas a relação Eu, enquanto sujeito, versus Não-eu, o objecto. O meu olhar transforma o outro em objecto ou sou transformado em objecto pelo olhar do outro. O mundo objectual só pode ter valor se eu lho atribuo. Para odiar, tenho que valorizar. Daí que não seja desprezista em relação ao que odeie, pois para isso o objecto seria-me indiferente.

Há o ódio visceral, como o de Almada Negreiros, obscuro, vingativo, agachado na sombra duma esquina. Há o ódio cínico, amarelado, ódio que reprime. O ódio mostra aqui o que o amor oculta. Há, por fim, o ódio do momento, espontâneo e irreflectido, nervoso e cego.

Destarte, é possível afirmar que o ódio está intíma e irremediavelmente ligado com a humanidade do Homem. Aquele que nunca odiou é frio, calculista, impenetrável, desumano. Os animais não odeiam, pois não sentem, não têm expectativas, auto-estima ou reflexo de personalidade. O animal irracional é o único espectador da sua própria conduta, e a única criatura que zela por si; logo, não se compara aos outros, nem por eles é ofendido nas suas acções. O chacal cuja carcaça é roubada pelo leão não o passa a odiar.

O exposto leva-me a crer que o elemento ofensivo, e por conseguinte gerador do ódio humano, não é a acção ofensiva em si, mas sim a falta de consideração que ela própria comporta. Ou seja, não é o mal per si que gera o ódio, sendo pelo contrário o desprezo em relação à pessoa do ofendido patente na intenção de prejudicar. Assim sendo, penso que posso também silogisticamente afirmar que aquele que menos odeia é aquele que possui a auto-estima menos elevada, por se ter em menor consideração e dificilmente se ofender.

06/07/2008

03/07/2008

Estúpida época, estúpidos dias, estúpida idade. Cincundas-te e nada te estimula. Contextualizas-te e tudo menosprezas. Estúpidas são as pessoas, estúpidos são os móbiles, estúpidas são as formas como passam o tempo. Fita-os demoradamente, olha-os mais fundo que os olhos e perfura-lhes a alma em busca do grito mudo na garganta e do buraco que trazes sempre no estômago. Procura-lhes a profundidade que lhes permitisse provar a dor humana. Raramente a encontras. A ingenuidade é a fórmula da felicidade. És o jogador cansado e falido pelas dívidas à procura da emoção do primeiro black jack.

Da dor humana nunca se fala. Discuti-la é vulgarizá-la. Um Homem sofre sozinho e sofre para dentro. A dor humana prova-se, mastiga-se prolongamente, deixamo-la consumir-nos. Mas a morticidade naqueles que a provaram é inconfundível. Há uma solidariedade intrínseca e silenciosa. Há um estado eufemístico que perdura. És agora o espectro dançante do que foste outrora. És o padre promíscuo e descrente à procura da fé e pureza revigorante dos tempos de seminário.

Deixaste de conseguir fingir sentimento. Há muito que não o sentes mas ainda conseguias fingir fascínio e entusiasmo. Estás agora coberto por uma apatia amarela, embaladora, de certa forma reconfortante. Nada lhes digas, mente-lhes descaradamente. Desabafo é fraqueza e a fraqueza é sempre pisada. Orgulhas-te dos teus erros, és soberano nas tuas acções. Nunca mostras arrependimento. Vives no circuito fechado da tua majestática consciência. Encerras-te no cinismo e no cepticismo. Apagaste a palavra saudade e olhas de soslaio para toda a gente. És mentiroso. Até para ti próprio. És o palhaço ridículo que se esqueceu como rir.

Julgavas que o iluminismo que sentias era a porta para a felicidade. O iluminismo que sentes hoje é condenação à insatisfação- o grau de exigência que sentes é maior que o tamanho da vida. Invejas Caeiro todos os dias. As distracções tornaram-se agora tão fúteis quanto necessárias. Efémoras, não perduram até à próxima manhã. A felicidade está tão perto e tão longe: oásis à distância de um beijo e miragem inalcançável ao fundo do destino. Entraste num círculo maldito: pensar é definição de ti e castigo de ti. Morres de ternura quando fechas os olhos, renasces para um vazio arrepiante quando os abres. És a viúva inconformada e inconsolável que todos os dias faz o jantar ao marido. Estás preso no momento - és o período entre o fecho dos bares e a abertura dos cafés. És a distância entre o divorciado e a moldura que segura nas mãos. És a mnemónica constante de ti próprio. És um voyeur exposto. És a patética decisão de vestir dois gémeos de igual. És o anacronismo de um idoso.

Movimento Perpétuo Associativo

01/07/2008

A virtude vulgar

'Aprende a contar uma anedota; duas anedotas; três anedotas; quatro anedotas... uma anedota diverte muita gente; aprende a polvilhar de blague todas essas ideias sérias, pesadas, profundas, obscuras, - ao cabo simplesmente maçadoras - com que pretendes sufocar (...); aprende a cultivar aquele subtil espírito de futilidade que ligeiramente embriaga como um champanhe, e a toda a gente agrada, lisonjeia todos (...); não queiras ser nem sobretudo sejas mais inteligente ou mais sensível, mais honesto ou mais sincero, mais trabalhador ou mais culto, mais profundo ou mais agudo... numa palavra: superior. Sim, homem! Aprende a ser como os outros, dizendo bem ou mal de tudo e todos - conforme - sem os excederes nem te comprometeres demasiado; e deixa-me lá esses Proustes e esses Gides e esses Dostoievskis e esses Tolstois (vem aí o tempo em que todos esses jarrões serão levados para o sótão!), deixa-me essa estética e essa mística e essa metafísica e essa ética (já o tempo chegou de se ver a inutilidade e o ridículo dessa pretensiosa decoração), deixa-me lá esses estrangeiros, e essas estrangeirices.'

José Régio