'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






31/08/2010

Morreu.


Tão somente. Sem avisar, sem dizer que já não vinha, sem forças para encostar a mão à minha.
Naquela cama que A prendia, com aqueles tubos que não entendia, a soro porque já não comia.
Depois da azáfama, não é fácil acabar nos quatro muros duma cama, que nem sequer era A sua, mas que foi o Seu mundo por um mês.



E eu ali, tão afastadamente perto.
E eu ali, a pensar comprar um cinto novo, hoje esteve imenso calor, vou jantar não sei onde.
E Ela ali, com a existência a dissipar-se a cada fôlego, a respiração pesada e rápida, os tubos e a máscara, o calor e o sufoco.
E Ela ali, a testa sem rugas, as mãos macias, os ombros brancos, os lábios trémulos, os olhos descrentes na continuidade, cansados de abrir. Mas de cada vez que os abria, quando eu A chamava, via aqueles olhos lindos, repletos.



– Vinte anos antes, o quarto dos brinquedos, eu e o meu primo e os piratas e o barco e os cowboys e o forte da playmobil. E Ela a aparecer à porta, com bolo e com sorriso e com amor e com tanto que eu não consegui retribuir. Se a juventude soubesse, se a velhice pudesse. Não sabíamos todos, então, que a morte se esconde nos relógios –



E nós aqui,
a questionar a dignidade dos últimos tempos, a derradeira solidão, a constrição de ver o marido no hospital, o medo de estar sozinha, a queda, a coragem de se arrastar até ao telefone, a vontade de viver,
e eu ali, de pé na ambulância, a pompa face aos paramédicos, a merda do nome completo, o tom enfatuado, a arrogância que não soube esconder mas só porque não queria que A tratassem como outra qualquer.
E ela ali, rendida à maca, fendida pela dor, a memória é traiçoeira e hoje creio que havia um brilho à Sua volta, era Madona Esterhazy de Raphael, os olhos devotos em mim, e eu ali.



Passaram tantos anos – quantos anos foram? – que já não o sei fazer. E aqui, escondido, humilde e desarmado, só sinto a cara esticada, um arrepio dorido na garganta e na mandíbula e as memórias que me salgam os lábios. Não há desespero ou angústia. Só o vazio de nunca mais poder chamar-Lhe Avó.



A morte fala-nos com uma voz profunda para não nos dizer coisa alguma.



Imagino que pouca gente entenderá o que Ela fez por mim.
O que Ela fez.



E eu aqui, entre os que ficaram, só queria partir, sentir-Lhe o colo e ver o esquadrão classe a, telefonar-Lhe e fingir que sou outra pessoa, ouvi-La pedir que não saia hoje porque está frio. Agarrar-Lhe as mãos velhinhas e explicar-Lhe que a gratidão não prescreve, porque o amor olha a morte com ares de soberba, tomando-a por indigna de si.



Não há frases presunçosas ou conclusões silogísticas. Só o que sinto, adoro, admiro, quanto faz parte de mim e quanto conservarei para sempre. Não sei se Lho disse vezes suficientes; queria tê-lo repetido até ao expoente da demência.



2 comentários:

Anónimo disse...

É bom ver-te a saberes valorizar aquilo que realmente é importante... ;)

M

Zé Tó disse...

Se é que há vida depois da morte, a tua avó ficará orgulhosa por estas palavras.