'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






05/12/2010

Incontaminada e cândida, tantos anos aquém (quantos anos foram?); meretriz da dignidade tombada e do decoro mirrado, hoje, no parque devasso onde os citadinos moribundos do sentimento acorrem, afoitos na busca da vã intimidade, como só pode ser a que se encontra num colo estranho e num ventre batido.

A menina doutrora, que um dia ouviu alguém com a adoração receptiva do vaso repleto, ávido da água germinante, é hoje a puta de olhar fétido, que me fita com o mesmo escopo de um pedinte astuto, incomodada pela minha aparente desatenção.

Percorro com passo apressado o passeio contíguo ao parque dos pecados, infamante do próprio Eduardo, de mãos no sobretudo e olhos no chão, de quando em quando palmilhando furtivamente a humanidade que lhe resta. A miséria esconde-se, improvável, não no seu rosto, mas atrás das janelas entreabertas dos carros que passam com o ajuizador vagar dos desafortunados do sentir; proletários redutores dos prazeres à carne examinam-na com expressões ásperas e másculas, esfregando as mãos crespas por cima de parkas grosseiras. Assumo que não seja fácil de reconhecer - mas existe uma subespécie que, como uma praga, dessensibiliza o Homem, mediocrizando-o aos poucos em virtude da matriz (sobre)vivencial da sociedade rendida ao rei Capital.

E ela, a do colo cansado – e sem que se pretenda aqui utilizar qualquer disfemismo – é a sobra do mundo. Quem dera devolver-lhe a esperança, saber se a menina dança, apresentar-lhe um C.E.O. clemente que lhe não comprasse o abraço e lhe beijasse a nuca enquanto dormia amarrotada numa camisa grande de mais para si, depois do banho, impregnada de aveia; que a levasse a jantar a sítios improváveis, falando-lhe do expressionismo do Pollock e do transtorno existencialista do Vergílio, das vantagens e vicissitudes da possível intervenção do FMI e de como o seu cabelo balouça enquanto mastiga, satisfeita; que a segurasse com a devoção inabalável de um católico filipino nas vésperas da Páscoa sangrenta, exorcizando a pouco e pouco os feitiços dos agrestes homens das janelas semiabertas.

Mas não… passo discreto, remoto por entre a minha fobia, longínquo de salvador e com a culpa de um pecador, expiada pela vergonha e suportação, enquanto ela fica para trás – cada vez mais para trás – entregue à próxima besta. Mas está tudo bem, creio que tudo esteja bem, já dizia o Conde d’Abranhos, ‘ele há questões terríveis’, mas está tudo bem. Onde é que jantamos hoje?

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