Para um vespertino e noctívago, as manhãs são tão cerradas como as noites para um camponês. E foi nesta última, uma hora antes do normal acordar para as aulas, que despertado fui por uma enfurecida turba de vizinhos que se iravam por entre os três pisos da garagem. Tinham-me assaltado o carro. E a outros sete. Mercedes, audis, os fora-da-lei ‘sabiam ao que iam’ (talvez eu sempre quisesse ter utilizado esta expressão, ou talvez intrinsecamente esconda um feitiço – do francês fétiche – pelo vulgar, ou talvez se trate de uma aposta com um amigo). O mesmo m.o. (muito Criminal Minds?), vidro de trás partido, porta-luvas, consolas e bagagens remexidos.
Desço ao -3 de mocassins, calças de ganga e a t-shirt que mais tinha à mão: alças. Pareço um John Mclain imigrado na Suíça. O meu primeiro contacto é com o meu velhaco vizinho de baixo que, piscando-me o olho em desleal cumplicidade, me diz que vem aí a polícia, e que eu deveria tirar as ilegalidades do carro… Rio-me, espirituoso. Ele sabe que eu sei que ele sabe que já foram inúmeras as vezes que, tardas horas, me viu deliciar-me com especiarias arábicas à janela. Aceno levemente, como quem desvaloriza um descabimento, e afasto-me. Por prudência, obedeço-lhe, discreto. Duas ou três ganzinhas, reservas…
Vejo o meu Pai entre uma juíza de roupão e o sr. engenheiro da crise de meia-idade e da namorada de 28. Procuro-a – à namorada de 28 – por entre a vizinhança, na esperança de que também tivesse descido com alguma túnica exótica ou uma camisa de dormir licenciosa (que mal tem? se todos me afirmam como púbere em relação a tudo o mais, por que o não posso ser também em relação à libidinosidade?). Mas não desceu. O meu Pai vem ter comigo e, em pronta consolação, lembra-me que são apenas bens materiais, que logo à noite compramos tudo novo, que o seguro paga o vidro, que não vale a pena perdermos a paciência com aborrecimentos tão insignificantes como este. Pela primeira vez desde que me arranquei aos frescos, solitários lençóis, sinto-me verdadeiramente lúcido e fito directamente o meu Pai. Involuntário, acabara de subscrever Séneca – o estóico renunciador e contemplador das realidades simples, contemporâneo da transição pagã-cristã – ou Brahmananda Saraswati – o guru do tantra e da meditação transcendental, cujos ensinamentos me ajudam a relativizar tudo o que me envolve –. Que desmedida admiração lhe devo.
Todavia, não é uma aflição material que me atemoriza. Coisas são coisas, que interessam para além daquilo para que servem? O que me mantém estático, a alguns metros dos carros e dos vidros espirrados pelo chão, é a minha peculiar fobia. Não consigo deixar de imaginar quem é que terá estado dentro do meu carro. Se tiver sido um bando de pretos ou mitras, toscos e desorganizados, ou uma família de ciganos, com os seus sotaques engraçados, ou mesmo uma quadrilha de ucranianos, com o método que só o frio pode impor, tudo bem. Mas a imagem que insiste em me ocupar a psique é a de um arrumador de carros, decrépito e moribundo, a remexer-me nas coisas. Então, simulado, assim que o meu Pai se afasta (para não pensar que sou mais desassisado do que o que de facto sou) pergunto a um vizinho o que me embaraça mas que não consigo desprezar: ‘– Então, isto terá sido obra de quem? Não me parece que tenha sido coisa de drogados, o que é que acha?’. Claro que não tinham sido drogados, o grau de organização é por demais evidente. Mas a irracionalidade de uma psicopatologia impele-me a repetir a pergunta ao mais graduado dos agentes, assim que chegam ao local. A mesma resposta. Rio. Rio agora. Mas o riso aliviado é um riso amarelo. Só me emergem as palavras de Churchill, ‘uma piada é uma coisa muito séria’.
Desço ao -3 de mocassins, calças de ganga e a t-shirt que mais tinha à mão: alças. Pareço um John Mclain imigrado na Suíça. O meu primeiro contacto é com o meu velhaco vizinho de baixo que, piscando-me o olho em desleal cumplicidade, me diz que vem aí a polícia, e que eu deveria tirar as ilegalidades do carro… Rio-me, espirituoso. Ele sabe que eu sei que ele sabe que já foram inúmeras as vezes que, tardas horas, me viu deliciar-me com especiarias arábicas à janela. Aceno levemente, como quem desvaloriza um descabimento, e afasto-me. Por prudência, obedeço-lhe, discreto. Duas ou três ganzinhas, reservas…
Vejo o meu Pai entre uma juíza de roupão e o sr. engenheiro da crise de meia-idade e da namorada de 28. Procuro-a – à namorada de 28 – por entre a vizinhança, na esperança de que também tivesse descido com alguma túnica exótica ou uma camisa de dormir licenciosa (que mal tem? se todos me afirmam como púbere em relação a tudo o mais, por que o não posso ser também em relação à libidinosidade?). Mas não desceu. O meu Pai vem ter comigo e, em pronta consolação, lembra-me que são apenas bens materiais, que logo à noite compramos tudo novo, que o seguro paga o vidro, que não vale a pena perdermos a paciência com aborrecimentos tão insignificantes como este. Pela primeira vez desde que me arranquei aos frescos, solitários lençóis, sinto-me verdadeiramente lúcido e fito directamente o meu Pai. Involuntário, acabara de subscrever Séneca – o estóico renunciador e contemplador das realidades simples, contemporâneo da transição pagã-cristã – ou Brahmananda Saraswati – o guru do tantra e da meditação transcendental, cujos ensinamentos me ajudam a relativizar tudo o que me envolve –. Que desmedida admiração lhe devo.
Todavia, não é uma aflição material que me atemoriza. Coisas são coisas, que interessam para além daquilo para que servem? O que me mantém estático, a alguns metros dos carros e dos vidros espirrados pelo chão, é a minha peculiar fobia. Não consigo deixar de imaginar quem é que terá estado dentro do meu carro. Se tiver sido um bando de pretos ou mitras, toscos e desorganizados, ou uma família de ciganos, com os seus sotaques engraçados, ou mesmo uma quadrilha de ucranianos, com o método que só o frio pode impor, tudo bem. Mas a imagem que insiste em me ocupar a psique é a de um arrumador de carros, decrépito e moribundo, a remexer-me nas coisas. Então, simulado, assim que o meu Pai se afasta (para não pensar que sou mais desassisado do que o que de facto sou) pergunto a um vizinho o que me embaraça mas que não consigo desprezar: ‘– Então, isto terá sido obra de quem? Não me parece que tenha sido coisa de drogados, o que é que acha?’. Claro que não tinham sido drogados, o grau de organização é por demais evidente. Mas a irracionalidade de uma psicopatologia impele-me a repetir a pergunta ao mais graduado dos agentes, assim que chegam ao local. A mesma resposta. Rio. Rio agora. Mas o riso aliviado é um riso amarelo. Só me emergem as palavras de Churchill, ‘uma piada é uma coisa muito séria’.
1 comentário:
esse desprendimento material e assustador!
lol tas tao frito ;)))
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