Que violência é essa que cheira a Ambre Solaire?
Parte III de III
Parte III de III
(continuação)
- Sou demasiadamente orgulhoso para achar que alguma mulher me ame; seria supor que ela sabe quem eu sou. Também me custa a crer que ame alguém; tal implicaria descobrir alguém da minha condição – lamuriava o mais Novo. O Outro baixou os olhos, endureceu a expressão, quis falar, manteve-se calado, disse por fim, - Suponho que seja verdade o que se diz no filme, a solidão é mesmo subestimada...
- Sem dúvida, e os olhos do mais Novo voltam a brilhar. E, doutro lado, as relações, as promessas, os compromissos, são sobrestimados. A sua erma condição é o relativismo. Na verdade, nada mais vale que o seu valor, e este é sempre aferido em relação a algo, sendo que tudo pode valer menos ou mais que tudo, comparativamente. Mas claro que não estou a falar de inconsequência, não me tomes por esses niilistas radicais que desdenham qualquer significação! Estou a falar da pueril imutabilidade de uma perturbação de alma que julgo eterna. Falo do meu inconformismo à razoabilidade do mero companheirismo, essa auto-imposta falácia colectiva, (e bem sabes que a crença força, quase que obriga a realização!). Claro que quem nunca sentiu o divino considera o mundano o requinte do ser. E provavelmente até sentiria essa sublimidade a que aspiro como inquietante e falsa.
O Outro sorri. Finge compreender.
- E a incredibilidade desses laços que nos unem, homem e mulher... – continua o Novo – mais não podem ser caracterizados senão como tragicamente melindrosos. Casamento? – ri-se – Só os gays e os religiosos é que se querem casar actualmente! Vês a ironia? Essa efemeridade latejante repercute-se até na economia e no modelo de trabalho. O indivíduo tem agora de ser móvel e adaptável. Os clássicos contratos de trabalho ad aeterno são raridades e a precariedade instalou-se. Nada dura, o instante rege. E o instante é egoísta. Uma relação só o é hoje, um compromisso apenas existe para trás e uma promessa só dura enquanto não se quebrar.
- Saber viver é saber adaptar-se..., riposta o Outro.
- Há uma bestialização concepcional que nos é inabdicável, por defeito. Somos todos filhos de um bando de bárbaros. E eu sou o filho, sou o herdeiro, de nada em particular. Apenas da minha obsessão em dissidiar. Ás vezes acordo de manhã só para abrir a janela e sentir a vida lá fora. Volto a dormir, a azáfama dos carros e das buzinas tranquiliza-me. Acordo depois do almoço dos outros, passeio despido pela casa, fumo e como. Depois deito-me e volto ao mundo real. – O Outro olha-o, estupefacto – Talvez a evolução da espécie passe por aí, pela marginalidade. Lá tenho tempo para existir.
- E existes mesmo? Parece-me que lhe foges..., diz o Outro, enquanto um sorriso mortiço lhe acentua a vulgaridade.
- Que culpa tenho, se a quebrantada intocabilidade de um afecto me agita o espírito e me amotina a razão?
- Parece-me que tu é que sobrestimas o que é simples e natural, insistiu o Outro, ostentando a sua pertinência.
- De forma alguma! Pelo contrário, redu-lo à descomplexidade com que Caeiro o interpretava. – Responde o Novo. Depois foge com o olhar, semicerra as pálpebras como se tentasse ler o longe. – Ou seja, concretizando-o em coisas simples: como a memória da violência daquele momento (que para mim assume a forma de uma brutidão desconcertante)... daquele momento perdido pelo Tempo e que já só relembro através da violenta sinestesia que combina o bege da areia e o azul do mar mais forte que o do céu, com o cheiro daquela pele impregnada de protector solar barato roubado num alisuper qualquer...
Subitamente, um estrépito ruído – duma forma sonora de kitsch que surpreenderia o próprio Gogol – perturba meia esplanada. O Outro atende. Frases curtas, desmotivadas. Tenho de ir, a patroa manda, apertos de mão, até qualquer dia, e nos olhos do mais Novo, que ficou sentado por mais um pouco, descobri aquele olhar com que os velhos ficam ao ouvir as histórias pujantes de vida dos netos. Demorei-me também. Até que o vi partir, primeiro nitidamente, com os olhos entretidos varrendo a esplanada, e os passos leves galgando a calçada; depois desvanecendo-se vagarosamente no meio da amotinada correnteza de gente que se dirigia para o Metro, naquele final de tarde.
Passados uns meses, vi o Outro num centro comercial num domingo de manhã, quando ia comprar uma barra de wax. Quase que o não reconhecia. Será a qualidade do que é vulgar susceptível de ser acentuada? Passeava-se em pegadas lentas, dominicais, com a camisa aos quadrados para fora das calças e o Tissot enfeitando-lhe o pulso, perseguido em pesaroso magnetismo pela mulher de cabelo escuro, sobrancelhas arranjadas e finas, feições sofridas e largas ancas; boa parideira, presume-se. Não há contacto, nem conversa. Não há nada nela que lhe peça água. Nem ele tem água para dar.
Quanto ao mais Novo, nunca mais o vi. Acho que quem souber povoar a sua solidão, saberá isolar-se entre as gentes.
Vejo-o às vezes. Sempre sozinho, sentado, fumando, sorrindo. O olhar remoto, apartada presença. É um homem só, um único inferno.
Vejo-o muitas vezes. Tantas, que até podia ser eu.
FIM
- Sou demasiadamente orgulhoso para achar que alguma mulher me ame; seria supor que ela sabe quem eu sou. Também me custa a crer que ame alguém; tal implicaria descobrir alguém da minha condição – lamuriava o mais Novo. O Outro baixou os olhos, endureceu a expressão, quis falar, manteve-se calado, disse por fim, - Suponho que seja verdade o que se diz no filme, a solidão é mesmo subestimada...
- Sem dúvida, e os olhos do mais Novo voltam a brilhar. E, doutro lado, as relações, as promessas, os compromissos, são sobrestimados. A sua erma condição é o relativismo. Na verdade, nada mais vale que o seu valor, e este é sempre aferido em relação a algo, sendo que tudo pode valer menos ou mais que tudo, comparativamente. Mas claro que não estou a falar de inconsequência, não me tomes por esses niilistas radicais que desdenham qualquer significação! Estou a falar da pueril imutabilidade de uma perturbação de alma que julgo eterna. Falo do meu inconformismo à razoabilidade do mero companheirismo, essa auto-imposta falácia colectiva, (e bem sabes que a crença força, quase que obriga a realização!). Claro que quem nunca sentiu o divino considera o mundano o requinte do ser. E provavelmente até sentiria essa sublimidade a que aspiro como inquietante e falsa.
O Outro sorri. Finge compreender.
- E a incredibilidade desses laços que nos unem, homem e mulher... – continua o Novo – mais não podem ser caracterizados senão como tragicamente melindrosos. Casamento? – ri-se – Só os gays e os religiosos é que se querem casar actualmente! Vês a ironia? Essa efemeridade latejante repercute-se até na economia e no modelo de trabalho. O indivíduo tem agora de ser móvel e adaptável. Os clássicos contratos de trabalho ad aeterno são raridades e a precariedade instalou-se. Nada dura, o instante rege. E o instante é egoísta. Uma relação só o é hoje, um compromisso apenas existe para trás e uma promessa só dura enquanto não se quebrar.
- Saber viver é saber adaptar-se..., riposta o Outro.
- Há uma bestialização concepcional que nos é inabdicável, por defeito. Somos todos filhos de um bando de bárbaros. E eu sou o filho, sou o herdeiro, de nada em particular. Apenas da minha obsessão em dissidiar. Ás vezes acordo de manhã só para abrir a janela e sentir a vida lá fora. Volto a dormir, a azáfama dos carros e das buzinas tranquiliza-me. Acordo depois do almoço dos outros, passeio despido pela casa, fumo e como. Depois deito-me e volto ao mundo real. – O Outro olha-o, estupefacto – Talvez a evolução da espécie passe por aí, pela marginalidade. Lá tenho tempo para existir.
- E existes mesmo? Parece-me que lhe foges..., diz o Outro, enquanto um sorriso mortiço lhe acentua a vulgaridade.
- Que culpa tenho, se a quebrantada intocabilidade de um afecto me agita o espírito e me amotina a razão?
- Parece-me que tu é que sobrestimas o que é simples e natural, insistiu o Outro, ostentando a sua pertinência.
- De forma alguma! Pelo contrário, redu-lo à descomplexidade com que Caeiro o interpretava. – Responde o Novo. Depois foge com o olhar, semicerra as pálpebras como se tentasse ler o longe. – Ou seja, concretizando-o em coisas simples: como a memória da violência daquele momento (que para mim assume a forma de uma brutidão desconcertante)... daquele momento perdido pelo Tempo e que já só relembro através da violenta sinestesia que combina o bege da areia e o azul do mar mais forte que o do céu, com o cheiro daquela pele impregnada de protector solar barato roubado num alisuper qualquer...
Subitamente, um estrépito ruído – duma forma sonora de kitsch que surpreenderia o próprio Gogol – perturba meia esplanada. O Outro atende. Frases curtas, desmotivadas. Tenho de ir, a patroa manda, apertos de mão, até qualquer dia, e nos olhos do mais Novo, que ficou sentado por mais um pouco, descobri aquele olhar com que os velhos ficam ao ouvir as histórias pujantes de vida dos netos. Demorei-me também. Até que o vi partir, primeiro nitidamente, com os olhos entretidos varrendo a esplanada, e os passos leves galgando a calçada; depois desvanecendo-se vagarosamente no meio da amotinada correnteza de gente que se dirigia para o Metro, naquele final de tarde.
Passados uns meses, vi o Outro num centro comercial num domingo de manhã, quando ia comprar uma barra de wax. Quase que o não reconhecia. Será a qualidade do que é vulgar susceptível de ser acentuada? Passeava-se em pegadas lentas, dominicais, com a camisa aos quadrados para fora das calças e o Tissot enfeitando-lhe o pulso, perseguido em pesaroso magnetismo pela mulher de cabelo escuro, sobrancelhas arranjadas e finas, feições sofridas e largas ancas; boa parideira, presume-se. Não há contacto, nem conversa. Não há nada nela que lhe peça água. Nem ele tem água para dar.
Quanto ao mais Novo, nunca mais o vi. Acho que quem souber povoar a sua solidão, saberá isolar-se entre as gentes.
Vejo-o às vezes. Sempre sozinho, sentado, fumando, sorrindo. O olhar remoto, apartada presença. É um homem só, um único inferno.
Vejo-o muitas vezes. Tantas, que até podia ser eu.
FIM
1 comentário:
Gostei imenso. O "Outro" é sem a menor dúvida um bom exemplo de um homem de classe média da geração de 80 (à excepção do Porto). Minimamente informado da actualidade, estudante universitário mas que chegou aos 20 e tal anos sem nunca ter pensado sobre a vida, vive-a apenas, dia-a-dia mas sem nunca reflectir no propósito da vida.
Quando lhe é posta essa questão abstracta, sente-se incomodado, porque é uma questão simples, mas com uma resposta complexa, e sem resposta utiliza o melhor desbloqueador de conversa possível: "Tchh, olha para aquela".
Está muito bem escrita, mas ao mesmo tempo simples e bem observada. Um retrato entre a conversa entre um tecnocrata e um pensador.
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