'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






01/04/2009

Estado de graça

Ao reparar que a gravidade não afecta de igual modo todas as mulheres, deixei a atenção sumir-se por entre esses movimentos tão vacilantes quão firmes, deslumbrado com tanta naturalidade de ser. Já são tantos os anos em que aceitei o dogma da naturalidade ser uma pose – talvez a mais pretensiosa de todas – que agora a reticência ensombra-me sempre que a admiro, como um beato ao ler Marx, e abalando-me a crença, inundando-me de redefinições, para de imediato me resfriar em cepticismo, encarando-a como o bluff exímio. Nada há que me fascine mais em tudo o que existe do que a naturalidade de se ser. Algo perfeito só pode ser estudado, imitado, trabalhado à exaustão, traindo a sua própria designação, como tudo o que tem a graça humana. Mas às vezes iludo-me e sorrio.

Deixo os anos colorirem-se com a sinceridade dum sopro de tudo o que É, breve e real. Nunca penso muito nos que ofendo, nem como os ofendi. Sempre mo perdoaram; nunca o questionei. O porquê era redutor... Mas quantas manhãs, na coruta da terna anamnese, revivo o abraço absolvente, naquela cama da batalha, depois das crueldades despojadas sobre si. Como o pôde perdoar, ou como esquecerei que o perdoou?
Mesmo tendo perdido a graça, caindo em desgraça, vivo sempre em estado de graça.

1 comentário:

Mightilde disse...

tens tantas amigas... e so "amiguinhas" a comentar... muito bem muito bem