'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






04/12/2008

Manifesto Autoscópico

O intelectual distingue-se pelo humor. Subtil, sarcástico, pretensioso. Frequentemente cínico. Distingue-se pela curiosidade e não pelo conhecimento – esse falacioso, facilmente adquirido por quem tenha tempo e móbil. Verbi gratia, um técnico de frio é certamente altamente qualificado em ares condicionados, um jurista em Direito, um talhante em carne, um médico em patologias, um psicólogo em comportamentalismo. Mas tal conhecimento na sua área e porventura noutras do seu interesse não os eleva ao estatuto do intelectualismo. Esse carrega o castigo da curiosidade. Ora alguém excepcionalmente curioso preencherá sempre as lacunas do que ainda não domina com a imaginação, com infinitas resoluções hipotéticas para o dilema com que se depara. Daí Einstein ter defendido que a imaginação é mais importante que o conhecimento, pois este é limitado, e a imaginação abarca o mundo.

Foi Auden que disse que ser-se livre (leia-se espiritualmente livre) é, com frequência, estar-se sozinho. Mas eu não quero subscrever as crenças de Vergílio Ferreira quando afirma que o destino do artista é o exílio; porém tenho que admitir que lhe parece obedecer como a um estranho mandato. Nada o intelectual deve trazer à rua; mesmo a sua vaidade é insignificante. E vive isolado porque é difícil acompanhá-lo, sendo o preço demasiado alto - quem caminhar a seu lado está condenado à ilimitude da condescendência. Mas é inevitável, no acatamento de uma condição, lembrar a ironia fatidicamente realista de Oscar Wilde, de que só há, na verdade, dois tipos de pessoas verdadeiramente fascinantes: as que sabem absolutamente de tudo, e as que não sabem rigorosamente nada.

Sinto tanto; penso demais. De forma que às vezes nem sei se o senti ou pensei, e o que senti e o que pensei. Foi pela convulsão de sentir e pensar e viver, que atingi a autoscopia, esgotante delírio de fuga minha a mim próprio, tendo chegado a juízo do que nunca julgarei. Assim sendo, é heteronimamente que te falo de seguida.

Agora ouves pretensiosamente Nick Cave e ostentas no metro os livros chatos que finges ler nos cafés. Os óculos deixaram de te diminuir e hoje usa-los às vezes como estilo pessoal. Passaste a fase dos nerds e dos radicais e da auto-afirmação. Aparentemente, a pirâmide social já não te empolga. Porque pensas que és tão melhor que os outros, e já fizeste tudo o que eles fazem, e já atingiste tudo o que procuram. Já mais nada aquele mundo tem para te oferecer que não tenhas conseguido. Os teus amigos parecem-te todos iguais, a andar em círculos ano após ano. As ambições dos que te rodeiam são, simplesmente, provincianas. Os seus sonhos tacanhos. Desististe de emendar os traços simplistas dos demais, e noto que falas cada vez menos. Até o dinheiro (!) te parece mais pequeno que outrora. Vejo-te a olhar para o visual cinzento e indiferente de Jarvis Cocker da mesma forma que olhavas há anos atrás para o Sean Virtue.

Ah!... que pessoa detestável é que acha que os ingleses – povo tenebrosamente frio – são paradigma para tudo? (quando gostas de algo, gostas tanto que me enjoa – estou farto de ti!). A polidez, a sobriedade e o corte das roupas, o tom altivo, a resposta displicente, o trato entre as pessoas, o cinismo. Adoras blazers e tweeds e berloques e botões-de-punho. No teu entendimento obsessivo, qualquer conterrâneo teu se veste mal. ‘Nem tanto à terra, nem tanto ao mar’, dizes - com o sarcasmo alteando-te os lábios, e esse acento arrogante que não sabes esconder - utilizando condescendentemente um ditado popular – que tanto odeias! - (como se Sua Divindade falasse com a gente vulgar na sua linguagem), para criticar aqueles que usam os fatos impecavelmente assentes, estaticamente empertigados e saloisticamente vaidosos, ou os que abusaram do negligé, demasiadamente relaxados e consequentemente sujos. Naturalmente, só tu és dono do meio-termo.

Tens o transtorno do filho único? Gira tudo em teu redor: os pais, os amigos, as de género oposto que minimalista e redutoramente designas por ‘gatas’, os colegas, o trabalho… se alguém te sorriu, cortês, é porque lhe fizeste valer o dia. Qualquer acto teu para com os outros é uma concessão. Adoras os outros enquanto lhes permites o benefício supremo da tua simpatia indulgente. Adora-los enquanto te veneram, reverentes. És narcisista e querias-te multiplicar num espelho! (Isso parece-me mais transviante do ponto de vista sexual do que mero egocentrismo absurdo). És obcecado pela vida saudável; quererás viver para sempre? Porquê tanta fruta, e sopa, e exercícios, e suor? - Leste algures que as toxinas são expelidas pela transpiração; e que o chá e o café são antioxidantes - Mas por que raio não deixas pelo menos alguns radicais-livres correrem-te pelas células? Talvez ganhasses cara de homem, pelo menos.

As mulheres ofertosamente enfeitadas já não te estimulam. Descobriste, tantos anos depois, que a beleza é o cruzamento entre o olhar e o entendimento. É a perfeita harmonia entre o olhar que busca e a mente que encontra. E que – tal como Deus – está nos pormenores. Sempre adoraste, admito, uma beleza natural, ‘beleza arrancada ao sono’. Relembro-o e relembras-me quando escreves. Mas agora pareces deleitar-te com a imunda negligência da mulher que lê despenteada numa esplanada, com os óculos descontraidamente na ponta do nariz, quase deitada sobre duas cadeiras, relaxadamente abstraída, tão idílica quão enigmática, que nem repara em ti porque bronze e corpo definido têm os pedreiros, e Fred Perry’s é apenas uma insígnia, e um BMW é só um carro.

E aí talvez te apercebas que um intelectual não o admite nem se revê nessa concepção, e muito menos se adora frente a um espelho, e não tem esse ego que te mata (ou te há-de matar). E que um filósofo não escreve somente sobre si e sobre a sua dor. E que um artista para o ser tem que atingir um grau de distanciamento quase exilante, um estado de migração das emoções e vaidades que tu, mero amante – porque é o que és – jamais obterás. O artista imita a vida. Tu vive-la. E por muito diferentes que sejam as formas de agora o fazeres, sabes que só o vento, e com ele as moscas, podem mudar.

1 comentário:

Anónimo disse...

"...bronze e corpo definido têm os pedreiros, e Fred Perry’s é apenas uma insígnia, e um BMW é só um carro."

Consideras estar ao nível de artistas e intelectuais, olhas-te ao espelho e vês a excentricidade de um grande pensador da nossa época (talvez o único!)..que se destaca das massas estupidificadas
pelo consumismo, facilitismo e consequente inércia da nossa geração... mas não te soltas das "armas de guerra" que fazem de ti o estereótipo que não queres ser??
O verdadeiro intelectual, o verdadeiro artista, ou o verdadeiro filósofo, é-o porque não consegue afastar a sua natureza de si mesmo. Não vive no anseio de o ser um pouco mais a cada dia, obrigando-se a si mesmo ao sofrimento para que as palavras e os pensamentos possam fluir. Ñão se define para depois se afastar dessa mesma definição, esperando que os outros consigam vê-lo nessa mesma caracterização à partida já tão parcial e criada à sua imagem e semelhança.
Se o intelectual é pretensioso...tu serás a personificação do intelectualismo.