'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






18/02/2009

Tempo

Um pássaro amarelo voa e alto morre.
Cai com a graciosidade dos anjos para um chão torpe, devorado pela azia infame do tempo. A abruptidão seca desse instante fatal golpeia-me com a monstruosidade da contida descrição que lhe devo, despejada na apatia de um ponto final.

O tempo perece-nos e leva-nos. Não por vicissitude, não por capricho, só porque sim. Porque existe, porque passa; e, distraído, nunca espera. O tempo tira-nos o tempo. Rouba-nos o que já tivemos: a fábula acabou e deixa-se de acreditar em livros. Esses ombros que te descaem são o marasmo da idade que não esqueces, e essa barriga onde adormeço é o depósito dos teus anos dourados. O teu longo cabelo dourado está fino e as mamas renderam-se à gravidade quando as ancas se sacrificaram à feridade dos partos. Mas nada que não esperássemos: o corpo é, desde o início, o condenado de se ser. O teu prejuízo foi o espírito, porque calados, graves e maduros perdemos a impulsividade estúpida da juventude, que nos prejudicava mas que incendiava aquele quinhão da alma que não arde por dinheiro ou estatuto, respeitabilidade ou estabilidade.

A expectação dessa era esticava até ao lado longínquo do devaneio.

Agora, escondendo o meu alvoroço atrás da distância, não me deslumbra a sabedoria das mulheres de rua nem as rugas da prova. Expeço a temperança que fabulas e a desapiedada gravidade com que me imitas, copiando a índole grisalha de que esperava que me libertasses. Porque o que quero são as palpitações e as improvidências! E aquele chorar balançante. E as tuas dúvidas insensatas.
Vivo por esse fôlego de imbecilidade infantil que já não to sinto, hesitante e tremente como um caloiro, farto e fértil como os campos verdes de Maio.

Espreito, mas só por um instante. Baixo-me, recolho-me na posição fetal onde me agasalho de ternura, depois de indecorosamente cumprir o priapismo com que pareço acordar todas as manhãs. Corro parado e toco a redenção com as pontas dos dedos, mas são os meus medos lhe ditam a impertinência, pela irrecorrível sentença da irreversibilidade do tempo – que não devolve o branco da candura. Tempo gasto, vasto, nefasto. Fosse de pendência monetária e pouparia toda a minha vida por uma máquina que me retornasse àquele momento antes do lúgubre ponto de não-retorno que nos raptou a alvura!
E agora já me não interessa pagar o resgate.

Sim, o Tempo. O mesmo que nos tira o tempo, e nos perece e leva, também nos conserva nessas masmorras do mesmo tempo que são a memória.

Nestes termos e pelos mais de Direito, pede-se a sentença de Vossa Excelência. O vosso douto despacho de fls. que me não interessam vaticina a usurpação de tudo que nos conhece. E a morte é o tempo, que nos cobiça, e nos esquecerá; e esquecidos ainda em vida, quando pesando aos netos, enlevados, ocupados, fingimos a calma e a resignação ao inconformável. Na última paragem desempenhamos o papel de uma vida ao transmitir a harmoniosa sensação de plenitude aos que agora iniciam a viagem.
E recordados somos por uma década, velados por uma semana, chorados por um dia.

O tempo que cobriu a distância deste tempo é a ponte desfeita que nos cativa na eterna margem dos que esqueceram aonde vai dar o caminho.
E aqui, nos despojos do desencontro, através do enfado da absolvente busca e da inanidade que desmorona e trai, mas que é consolo maior (por dissipada a esperança), a putrefacção que o tempo nos legou converteu a dor em macio autismo da minh’alma, não pensando, amando, sentindo, intuindo.

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