'O homem vulgar, por muito dura que lhe seja a vida, tem pelo menos a felicidade de não a pensar.'


Bernardo Soares in Livro do Desassossego






09/01/2009

Dissocializando

O instinto sociopático torna-se em mim, de dia para dia, tão natural como o acto de pestanejar. Reflexo, irreflectido, banal.

À minha volta as massas vivem num tempo de trevas, inteiramente inebriados pelas convenções societárias, que mais se me não afiguram do que as cordas com que são marioneticamente maneados. O ser vulgar, homem médio, sub-existe inerte por entre a anestésica rotina de discotecas e bares, futebol e televisão, filmes e música que lhe é impingida. A cultura livre não existe, pois os parâmetros estão preconcebidos de forma a encarreirar as massas nas baias do absentismo. E a moral – a moral é a monstruosa criação de séculos de trevas, de neblinosas concepções absolutistas sobre Deus e o Homem, Religião e Estado, Nação e Estado, Forma de Estado e Indivíduo. Não provoca, porquanto, qualquer choque em mim afirmar que a Moral está morta.

Apaticamente o reitero. Mas, ao invés de praticamente toda a escola neo-intelectual do Ocidente da última metade do século XX, não defendo a amoralidade do ser (nem, por maioria de razão, a imoralidade, como algumas alas mais radicais, designadamente em certos círculos parisienses, parecem tendenciar). A meu ver, a moral assentará basilarmente sobre a família. Este seria o núcleo da sociedade que eu proporia, à volta da qual se ergueriam mecanismos proteccionistas e desenvolvedores do mesmo.

Não será harmónica a minha posição, visto pender por vezes para o conceito de família-instituição – indubitavelmente a preponderante – tal como Engels propõe a dialéctica monogâmica em Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Certos sectores, valorativamente anarcas, bradariam certamente ao atingir o proposto. Mas a interpretação tacanha é o desastre do espírito; e o espírito inobservante é o atolo da imaginação, o atrito do progresso. Daí que urja ressalvar de imediato que defendo a total libertinagem de espírito, dentro do livre-arbítrio jurídico-social que incute a cada indivíduo a escolha e consequência dos seus actos (desde que, evidentemente, não sejam nocivos à sociedade, em geral, ou a um terceiro indivíduo, em particular).

Involuntariamente fui perdendo a identidade com o povo a que pertenço. A sociopatia instala-se lentamente. Por vezes apercebo-me que, alheado, estaco na rua observando outros que se parecem comigo, têm a minha pele e o meu cabelo, movem-se como eu, falam a minha língua, riem-se da mesma forma que eu e, não obstante, surgem-me como uma espécie absolutamente estranha. Não concebo uma conversa com um destes seres, tal como não o faço com um cão. A interacção é extraordinariamente limitada e atroz, reduzindo-se ao minimalismo linguístico que permita um entendimento fugazmente civilizacional. Discutir temáticas relevantes, questões profundas, áreas transcendentais com criaturas de índole tão dispare da minha é-me tão inconcebível quanto pedir uma explicação algébrica a um peixe. A sociopatia vence, e governa imperialmente! Tal como a gripe, propaga-se àqueles com que convivo. A culpa pesa-me amiúde, mas como um latejo – pelo que, intermitentemente, me sabe à glória beatificante da influência em espírito alheio.

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