30/12/2009
29/12/2009
22/12/2009
Psycho Killer (Talking Heads, 1977; também a versão de Peter Doherty, Glastonbury 2009)
e é entre a nitidez do hortinha que me encanta com histórias brilhantemente descomplexas, e entre as cabeças amotinadas à minha frente na cama sobrelotada que agora faz de sofá que a velha televisão de 4 canais pouco visíveis e escassamente audíveis me coage a atenção pelo sublime do que o não pode deixar de ser, pela graça e pelo acordo,
no meio de um reality show das massas atulhado de aspirantes a estrelas, novos-pobres do colégio interno das almas que preferem a vespertina busca num centro comercial (gastando o que ganharam – ao custo usurário da sua vida – no eterno ciclo da hipnoterapia repetitiva preconizada por Aldous Huxley) a um dia de sol com uma boa companhia, numa praia inóspita, inabdicável. E no meio desta próspera e respeitável classe do meio emergente, afoita por reconhecimento e ‘vivendas’ com piscinas, aparece a diferença e a semelhança, que me atenua – mas só por um momento – a insurrecta perspectiva de uma dissidência maior.
Sei que nem todas podem ser Karen Blixens, mas gosto de pensar que sim, que pelo menos são mais do que as que pensamos. E não consigo ficar alheio à diferença e à semelhança. Sou parcial, talvez Musil tenha razão, e ‘um homem que busque a verdade torna-se sábio; um homem que pretenda dar rédea solta à sua subjectividade torna-se, talvez, escritor’.
21/12/2009
Martin Niemöller
17/12/2009
15/12/2009
09/12/2009
The U.S. vs John Lennon
30/11/2009
24/11/2009
11/11/2009
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
(...)
Álvaro de Campos
09/11/2009
05/11/2009
27/10/2009
"É inegável o gosto que dá pensar sozinho. É um acto individual, tal como o é nascer e morrer." C. Drummond A.
E tu enfias-te numa máquina para ires trabalhar bronzeada segunda-feira?
Pensa.
O legado que carregamos vai além da nossa compreensão, derradeiros exemplares duma gloriosa espécie, praguejando um planeta outrora equilibrado. Curiosa, esta espécie dominou ecossistemas, floras e faunas, elementos e outer space. Talvez também seja essa a nossa divindade – então residiria justamente na nossa insignificância singular. Mais não somos senão um todo, ao longo dos tempos: a formidável evolução de 4 mil milhões de anos. Sozinho, o João Silva, engenheiro, casado, não é nada; apenas um grão de areia no deserto da imemoridade. E no entanto foi pai de três filhos, mimou-os, ensinou-lhes princípios. “–Ensinou-os a sobreviver, tal como a leoa às crias”, dir-me-ás. Mas o João Silva não os ensinou somente a caçar ou trabalhar. Ensinou-lhes a rectidão, a bondade e a equidade. E é precisamente isso que revela o desejo de preservação de uma espécie per si, e não por qualquer subjectividade para quaisquer dos seus elementos (ou por quaisquer instintos). É a isso que me refiro quando digo que tornamos a nossa insignificância especial, única, divina: a espécie humana faz por significar a sua reducente existência.
E tu defines-te como português ou jurista ou médico, benfiquista, liberal ou conservador, muçulmano ou cristão, socialista, monárquico, anarca ou heterossexual?
Pensa.
Relativizando, relativizo-me e te. Relativizo-nos e vos. Parece-me que é essa a cura da angústia de não saber, e o elixir da despreocupação, por não pretender saber. Nada é mau, comparativamente, tal como nada é bom, confrontadamente. Vivendo de um vestígio, exacerbando insensibilidades e distanciando-me do que é dos homens, indeliberadamente asfixio o elemento divinizante a que me referia atrás. Pintando de vulgar a existência, escondendo-me do intento de aqui estarmos e perdendo-me do sentido, inexisto. Tal como se a insignificância existencial, possível fosse, ainda se tornasse mais opaca.
E eu preocupo-me com o “trato sucessivo” de já nem sei bem de quê?
Pensa.
Penso.
25/10/2009
22/10/2009
in Salomé, Oscar Wilde
14/10/2009
13/10/2009
07/10/2009
Desço ao -3 de mocassins, calças de ganga e a t-shirt que mais tinha à mão: alças. Pareço um John Mclain imigrado na Suíça. O meu primeiro contacto é com o meu velhaco vizinho de baixo que, piscando-me o olho em desleal cumplicidade, me diz que vem aí a polícia, e que eu deveria tirar as ilegalidades do carro… Rio-me, espirituoso. Ele sabe que eu sei que ele sabe que já foram inúmeras as vezes que, tardas horas, me viu deliciar-me com especiarias arábicas à janela. Aceno levemente, como quem desvaloriza um descabimento, e afasto-me. Por prudência, obedeço-lhe, discreto. Duas ou três ganzinhas, reservas…
Vejo o meu Pai entre uma juíza de roupão e o sr. engenheiro da crise de meia-idade e da namorada de 28. Procuro-a – à namorada de 28 – por entre a vizinhança, na esperança de que também tivesse descido com alguma túnica exótica ou uma camisa de dormir licenciosa (que mal tem? se todos me afirmam como púbere em relação a tudo o mais, por que o não posso ser também em relação à libidinosidade?). Mas não desceu. O meu Pai vem ter comigo e, em pronta consolação, lembra-me que são apenas bens materiais, que logo à noite compramos tudo novo, que o seguro paga o vidro, que não vale a pena perdermos a paciência com aborrecimentos tão insignificantes como este. Pela primeira vez desde que me arranquei aos frescos, solitários lençóis, sinto-me verdadeiramente lúcido e fito directamente o meu Pai. Involuntário, acabara de subscrever Séneca – o estóico renunciador e contemplador das realidades simples, contemporâneo da transição pagã-cristã – ou Brahmananda Saraswati – o guru do tantra e da meditação transcendental, cujos ensinamentos me ajudam a relativizar tudo o que me envolve –. Que desmedida admiração lhe devo.
Todavia, não é uma aflição material que me atemoriza. Coisas são coisas, que interessam para além daquilo para que servem? O que me mantém estático, a alguns metros dos carros e dos vidros espirrados pelo chão, é a minha peculiar fobia. Não consigo deixar de imaginar quem é que terá estado dentro do meu carro. Se tiver sido um bando de pretos ou mitras, toscos e desorganizados, ou uma família de ciganos, com os seus sotaques engraçados, ou mesmo uma quadrilha de ucranianos, com o método que só o frio pode impor, tudo bem. Mas a imagem que insiste em me ocupar a psique é a de um arrumador de carros, decrépito e moribundo, a remexer-me nas coisas. Então, simulado, assim que o meu Pai se afasta (para não pensar que sou mais desassisado do que o que de facto sou) pergunto a um vizinho o que me embaraça mas que não consigo desprezar: ‘– Então, isto terá sido obra de quem? Não me parece que tenha sido coisa de drogados, o que é que acha?’. Claro que não tinham sido drogados, o grau de organização é por demais evidente. Mas a irracionalidade de uma psicopatologia impele-me a repetir a pergunta ao mais graduado dos agentes, assim que chegam ao local. A mesma resposta. Rio. Rio agora. Mas o riso aliviado é um riso amarelo. Só me emergem as palavras de Churchill, ‘uma piada é uma coisa muito séria’.
06/10/2009
05/10/2009
Ferreira Fernandes in Diário de Notícias, 5 Outubro 2009
02/10/2009
29/09/2009
Eu só quero ver o instante
Em que chegas à MANIF,
No teu Armani flamejante
(Qual vermelha passadeira)
Em vermelho redundante
Que empalidece a bandeira.
Vou ficar a ver-te mudo
Gritando slogans na rua
Pela divisão da riqueza;
Enquanto nos gabinetes de veludo
O poder treme e recua
Com medo da tua beleza.
Então dou-te uma toilette,
Soneto de alta costura,
A mais chique maravilha;
Para me sentir perdoado
Por não poder estar a teu lado
Quando tomares a Bastilha
21/09/2009
O Meu Voto Anti-sectário (e não prosélito!) - explicado a todos que não o entendem, como se tivéssemos 15 anos...
Mas cabe analisar o pensamento direitista em duas vertentes: a económica, e a dos valores.
Fácil se torna, a qualquer pensador, criticar o raciocínio tardo de um direitista, no campo valorativo. Afigura-se-me como um exercício pouco estimulante (é como contra-argumentar com quem acredita na Criação, do Antigo Testamento, em desprimor da Evolução, de Darwin).
Não pretendendo subestimar o pensamento da direita em relação aos valores, é inafastável a qualificação do mesmo como uma cavilosa inércia à mudança e uma tremenda indolência per progresso (não económico; mas enquanto espécie, civilização). A manutenção do presente, e nalguns casos, o restabelecimento do passado, mais não podem ser considerados do que perfeitamente anti-naturas. O pai da dialéctica, Heraclito de Éfeso, ditou há séculos atrás um dos mandamentos da Lógica: ‘A única constante do mundo é a mudança’. Quem contra ela reage apenas poderá ter, creio, uma das duas justificações: ou a prossecução de interesses ocultos pela falácia da retrogradação em nome duma moral e costumes obsoletos; ou age em perfeita nescidade conceptual, dotado duma admirável ausência metafísica, em plena nulidade circunspectante.
Todavia, há circunstâncias envolventes do conservadorismo que, em parte, o desculpabilizam: este já foi explicado cientificamente pela ocorrência de fenómenos neurológicos, que podem ser traduzidos por uma vulgar ‘tacanhez’. Tais reacções químicas no córtex manifestam-se, do meu ponto de vista, em inúmeras situações da vida, como a acomodação de uma mulher ao parceiro que a trata mal, a resignação do empregado ao trabalho que detesta, o conformismo de um obeso com a sua morfologia. Acredito que somente o pensamento livre das algemas da tradição e do dogma pode inverter tal patologia. Mas, fruto da propensão da sociedade moderna para a alienação e entretenimento, imagino como difícil a concretização dessa meditação. Tetrahidrocanabidol, Dietilamida do Ácido Lisérgico ou até Salvia Divinorum ajudam; mas, se a sua fruição for unicamente orientada sob a égide ditatorial do entretenimento, pode ter o efeito contrário, o aprofundamento da alienação pelo que nos rodeia.
O conformismo é um poderoso aliado do conservadorismo. Daí que eu defenda, como substructio do progresso da nossa espécie, o choque geracional. Aquele que busca a aprovação do Pai (entenda-se a sociedade, os professores, os pais em estrito senso, o padre), procurando conservar os hábitos do seu tempo passado, aceitando o que lhe é ensinado por via dessa arma trágica que é a tradição, aceitando o que lhe é ensinado sem o questionar, obsta à volubilidade da sua própria comunidade, abrandando o próprio tempo, promovendo a limitude.
A política actual deve versar, fundamentalmente, sobre economia. Orçamento e gestão pública. As liberdades civis – aborto, legalização de todas as drogas, eutanásia, casamento e adopção gay, prostituição, et cetera – devem ser totalmente liberalizadas (trata-se de uma mera questão de tempo, um processo volitivo de aceitação colectiva de ruptura com a moral de outras Eras – niilismo nietzscheziano) de forma a que a governação se dedique exclusivamente à gestão de recursos e regulação do Mercado, atingindo assim a comunidade o estatuto supremo da liberdade, cumprindo a verdadeira definição de democracia, com cidadãos tolerantes, informados e socialmente responsáveis.
É precisamente na economia que os argumentos da direita ganham força. Economicamente falando, tudo é mais prático e directo. Aqui liberais, neoliberais, keynesianos, neoconservadores, socialistas, nada têm a ver com Moral ou Religião. Tudo gira em torno de teorias económicas e modelos de desenvolvimento. Tal como na matemática, tudo é mais sincero.
É, penso, perfeitamente inequívoco que o motor de uma economia deva assentar na iniciativa privada – desde logo pela natureza intrínseca ao homem (o egotismo) pelo que a obtenção de lucro e a ascensão na hierarquia social como seu corolário são a melhor motivação para o investimento e a consequente geração de riqueza num determinado sistema, consubstanciando este o melhor modelo de desenvolvimento económico.
Afastadas que estão neste início de século, portanto, as teorias absolutistas de ingerência estatal, os totalitarismos económicos e as operações públicas invasivas que caracterizaram o comunismo e o fascismo (e as figuras híbridas que lhes foram subsequentes), foquemo-nos na única via que julgo viável, como vimos acima, para o desenvolvimento económico: a Economia de Mercado.
Partindo da aceitação deste sistema, é aqui que surgem as principais clivagens entre a direita moderna e a esquerda moderna. Clara Ferreira Alves disse há alguns anos que ‘actualmente, ser de esquerda é ser contra os lobbies’. E é precisamente aqui a fronteira entre as duas visões. Enquanto que a esquerda moderna, aceitando a Economia de Mercado como modelo de desenvolvimento, defende contudo uma regulação estatal, através do balizamento de comportamentos económicos, estabelecendo algumas barreiras de forma a impedir o capitalismo selvagem ou desenfreado, a direita, por seu lado, toma a defesa de uma total desregulação do mercado, deixando-o a funcionar per si, pelas forças que nele se movem. Respeitando o entimema, não é preciso ser-se Adam Smith para rapidamente se reconhecer que as mais temíveis forças do mercado são os lobbies (grupos de pressão relativamente aos seus interesses), que desequilibram por completo a justiça do mercado, podendo até dominá-lo por absoluto, se não houver uma contra-força a mediar (o Estado).
Para melhor explicitar esta perspectiva, pensemos num exemplo localizado: uma empresa. É certo que gera riqueza, empregos, impostos e segurança. Não obstante, o seu principal (muitas vezes o único) objectivo é o lucro. Tal advém do anteriormente referido egoísmo humano – e que deve ser aceite como intrínseco, pois é tão natural como a libido, o sentimento de posse, o amor ou a sede. Os empreendedores privados (v.g. as entidades patronais), em última instância, estão focados no lucro. Não na comunidade, nos trabalhadores, nas suas famílias, na segurança dos seus empregos. Tal deve não deve ser negado e é necessário que seja aceite como condição do ser humano.
Com a aplicação deste caso pontual a uma grande escala – ao Mercado – entende-se qual seria o resultado de uma total desregulação do mesmo: a concentração em poucos dos recursos de muitos (e o principal recurso do mundo é a produtividade do trabalho humano). Provavelmente os interesses privados, focados no ganho, acabariam por gradualmente dessagrar uma das maiores conquistas da Humanidade – o Estado Social. Porque o objectivo dos privados será sempre somente o lucro. A direita moderna assenta no conformismo do Homem à sua própria condição egocêntrica, inobservando desigualdades e injustiças geradas pelas suas condutas. Defino-o como uma desresponsabilização suprema das nossas acções enquanto indivíduos que se movem numa comunidade, como se, por via de uma maquiavélica avidez de lucro, pudéssemos artificiosamente subterfugir ao reflexo nos outros dos nossos actos. A orientação do Estado – composto por tantas vontades e orientações diversas entre si – é um garante de sensatez e moderação na economia.
Nascido e desenvolvido na Europa, este Welfare State é o mais proeminente sucesso da nossa humanidade: o cuidar do próximo; encerra, também, o expoente máximo da cidadania, a noção de que a cada indivíduo são indissociáveis um conjunto de direitos e deveres; garante também a intervenção estatal nos efeitos mais flagrantes da pobreza, como a fome e a indigência; promove a regulação de sectores essenciais como o Direito do Trabalho ou a Segurança Social; afiança que a res publica providenciará pela igualdade de oportunidades entre todos, através da Educação Pública e do Sistema Nacional de Saúde; assegura a promoção da concorrência leal nos mercados e o zelo por um sistema judicial célere e independente. São estas as características que nos diferenciam dos EUA, e são estes adiantamentos civilizacionais que nos cumprem defender de cada vez que exercemos o direito de voto.
Sou enfatuadamente apartidário: afasto-me – a bem do rigor intelectual – de qualquer tipo de corporativismo, designadamente dos partidos políticos. Tal como o meu Pai. De formação socialista, nunca se filiou nem fidelizou em nenhum partido, debruçando-se actualmente sobre certos movimentos defensores da democracia participativa. E eu, que já fui filiado nos dois partidos da direita, vou agora votar no Bloco. Conto com a vitória do PS, mas considero fundamental a não obtenção da maioria absoluta. O poder corrompe; os lobbies proliferam mais facilmente se não houver pluripartidarismo na tomada de decisões. Politicamente, sou um moderado. Talvez me reveja actualmente numa esquerda centrista. Considero os radicalismos (políticos) perigosos. Mas acho que a consolidação do Bloco de Esquerda como terceira força política na Assembleia da República seria uma eficaz arma contra as pressões dos grandes grupos económicos, adjudicações duvidosas, derrapagens orçamentais e falta de transparência na gestão dos dinheiros públicos.
17/09/2009
Sem classes, divisões ou cor,
Estava a Rosa, entre o brasileiro e o preto
Primorosa, lendo Os Contos de Maldoror.
Igualdade, marca moderna,
Entre tantas, distinta aquela Rosa.
Discreta e morna, vasta soberba
Como a aurora, despertando-me a prosa.
Por que me olhas, evasiva, ó Rosa?
Eu sou Fôlego, submergindo da ennui
Que colora o vagão cinzento, taciturno,
Condenação dos que andam por aqui.
Vincam-se-lhe dentes brancos nos lábios vivos,
Tez cadavérica com os olhos lívidos;
O cabelo corre-lhe distraído entre os dedos
Rosa és tentação, és os meus ímpetos e medos.
Não me encantes, ó Rosa, sendo cúmplice e conivente;
Não vês – para além do enlameio – que sou apenas sarcasmo?
Não busco o Gräfenberg, nem espero, sou corpo ausente…
Origem do meu crime: farto-me – foge-me o entusiasmo!
Acho que de início me engano e confundo
Impulsivamente, precipita-se-me um ditame,
Par ne pas cherchez dans l’être profond
Une que je ne poux pas penser, Ma Dame…
13/09/2009
31/08/2009
'Femmes Damnées', Charles Baudelaire (excerto)
(tradução +/- livre)
Teremos acaso cometido alguma acção estranha?
Explica, se és capaz, o meu transtorno e o meu horror
Tremo de medo quando me dizes: 'Meu anjo'
E ainda assim sinto minha boca ir em busca da tua.
Não me olhes mais assim, ó tu, meu pensamento!
Tu que eu amo para sempre, minha eleita...
Mesmo que fosses um embuste à minha alma
E a própria origem da minha perdição!
-E quem diante do amor ousa falar do inferno?
Maldito para sempre o sonhador inútil!
Que primeiramente quis, por sua estupidez,
Enfrentando um problema insolúvel e fútil,
Às delicias do amor juntar a honestidade!
O que deseja unir, num acordo místico,
O dia com a noite, o frio com a flama,
Jamais aquecerá o seu corpo paralítico
Com aquele rubro sol que se chama Amor!
Aqui somente é lícito servir-se a um único mestre.
Mas Hipólita, de súbito gritou, em enorme aflição:
'-Sinto em meu ser abrir-se um abismo,
E este abismo é enfim meu Coração!
Ardente como um vulcão, mais fundo que a tormenta,
Nada aplacará este monstro dentro de mim!
E nunca há-de saciar a sede de Eumênide
Que o queimará, archote em punho, até ao fim.
Que os véus de nossa alcova nos ocultem do mundo,
E que o cansaço dê repouso a tais agruras!
Quero extinguir-me no teu vórtice profundo
E no teu seio achar a paz das sepulturas...'
-Descei! Descei, ó lamentáveis vítimas!
Descei por onde o fogo arde em clarões eternos!
Mergulhai neste abismo em que todos os crimes,
São flagelados por um vento oriundo dos infernos!
Jamais um raio clareará vossas cavernas,
E pelas fendas os miasmas delirantes
Infiltrar-se-ão brilhando, como lanternas,
Penetrando-vos os corpos de odores nauseantes!
Cumpri o vosso destino, almas desordenadas,
E fugi do infinito que trazeis em vós.
-Hipólita, meu coração, que me dizes destas coisas?
Compreendes agora quão pueril é oferecer
O holocausto sagrado das tuas rosas em botão
Aos ventos lá de fora que as podem esmorecer?
-Hipólita, meu amor, vira para aqui a tua cara
És a minha alma e o meu coração, o meu todo e a minha metade
Mostra-me esse olhar cheio do azul dos céus,
Deixa-me contemplar esse bálsamo bem-vindo;
Dos prazeres mais obscuros eu erguerei os véus
E adormecer-te-ei num sonho infindo...
31/07/2009
26/07/2009
22/07/2009
20/07/2009
16/07/2009
09/07/2009
Parte II (continuação)
me mantenho – entre a sua pele desrugada e o seu corpo imberbe que me infligem um sentimento de invasão, incorrecção, deslocação – na descrença esperançosa de que um acto com a magnitude trágica do Amor me atordoasse de sentimento e ciúme, auspiciando o próximo acto seu!
Que me atordoasse como…
como o próximo momento em que a visse, no passeio do outro lado, nem que fosse num lampejo – que uma indolência irreflectida não permitiu tornar-se num olhar prolongado, venerado – mas que helenizou a finada rua com uma luz bruxuleante que me sombreava os passos tremeluzentes, enlevados pela descarga de pesar que refutava intensamente aquilo de que me convenci, anos atrás.
Ah que cor! – mistura doces tons de amarelos com o dourado divino –, que caminhar, que flutuantes movimentos a deslocam!
Mas o segredo da minha veneração esconde-se na forma como reflecte a luz. Qualquer tipo de iluminação. Delacroix vergar-se-ia; Sir Edward John Poynter venerá-la-ia; eu estranho-a.
E retorno sempre, desbotado, ao recanto confortavelmente inerte onde a viveza primitiva se desvaneceu, e lá me demoro, embaído com rotinas, companheiras e carícias brandas, quietações e canabiáceas várias…
embora raramente, (com o sobressalto da morte súbita!), me veja atiçado ao devaneio meigo e meloso dum sentir conturbado, ao ler no telemóvel a sua braquigrafia infantil no formato de sms… adormecendo mais tarde, arrebatado de tanto sentir, com os dedos lânguidos tocando o ameno ecrã, e a imaginação fecunda percorrendo os trilhos frugais do seu terno aroma.
03/07/2009
Se tens vergonha dela e ela também de ti
Então és dono dela e ela é dona de ti
E cada amigo dela faz nascer o mal que há em ti
Se tens vergonha do que fazem só os dois
Se tens vergonha do que fazem só os dois
De cada amigo dela vem-te o medo que a façam depois
Se o que tu queres dela ela te diz que é só de ti
Se o que tu queres dela ela te diz que é só de ti
Então o que ela quer tu crês que também podes querer para ti'
B-Fachada - O Ciúme e a Vergonha
http://www.myspace.com/bfachada
30/06/2009
28/06/2009
26/06/2009
Jarvis Cocker (from Pulp) invaded the stage at the 1996 BRIT Awards in a spur of the moment protest against Michael Jackson's performance. Jackson performed surrounded by children and a rabbi, while making 'Christ-like' poses and performing his then-recent hit, 'Earth Song'.
Jarvis Cocker performed an impromptu stage invasion in protest. In the ensuing confusion, as security attempted to eject Cocker from the stage, three child performers received minor injuries.
Cocker was later detained and interviewed by the police on suspicion of assault. He was subsequently released without charge.
Jarvis said: 'My actions were a form of protest at the way Michael Jackson sees himself as some kind of Christ-like figure with the power of healing...'
17/06/2009
Parte I
Naquele cemitério de vazios e saudades, numa manhã em que o vento seco levantava a terra das campas que, lúgubre e aquosa, se lhe colava aos lábios húmidos, espreitou por entre dois mausoléus humildes e pareceu-lhe ver-me, sentado, prostrado, escrevendo, esmorecendo.
Como me lembro de a ver passar, na monotonia dos dias, carregando os seus crisântemos e as suas rosas e as suas mágoas pesando-lhe aos ombros. Caminhava com a ligeireza de quem quer passar entre a sentença do destino, com a audácia de quem foge a um sentimento, com a culpa de quem não sabe o que quer.
Danificada como eu, transtornada como eu.
A cada dia que passava espreitava como quem não acredita, por entre dois mausoléus de dor; e a cada dia mais bonita, e a cada dia a sua graça era maior.
E eu sonhava – porque tocar é realizar, e a realidade desaponta-me com a brevidade de um soluço – então sonhava. E às vezes atingia aquele anseio quase canibalístico e tortuoso que me não deixa sequer pensar.
Alheada como eu, mortificada como eu. Passa com a malha sombria que lhe dissipa a silhueta e com a mofina saia que lhe esconde a libido, mas lhe denuncia as pernas brancas e finas com a doce penugem escura, e com os calcanhares que tendem para dentro e lhe patenteiam um caminhar amoroso.
As minhas desusadas atracções revelam-se-me uma vez mais à medida que o órgão vomero-nasal lhe rapta as feromonas fugidias.
Inexplicável, incontornável. A congruência reside no insólito, e já tantas vez o expus às minhas repetidas amigas – quais cromos para troca! – parametrizadas pelo vulgar e forjadas pelo profano convencional, que agora mais se me assemelha a uma prelecção ponderada e artificial. Mas não o é! E, de tão farto que estou de depilações equivocadas, dietas malogradas, corpos postiços e trabalhados, cabelos pintados (e o kitsch que só pela profunda definição não lhe vale o privilégio de se dizer mais nada), tantos são os dias que, esticando-me, me tento agarrar ao que resta da minha identificação socio-cultural a este lugar…
As minhas desculpas. Os meus pêsames. Mas ela é a idealização do que me é edénico. Irreal como a vida, virtuosa como o sonho e fervente como só um sentimento pode ser.
Ela não existe.
09/06/2009
08/06/2009
Frank G. in Diaporese.blogspot.com
02/06/2009
De nihilo nihil
Adulaste-me ao ver-me descer na fermentação da escarpada desnivelação do nosso pensamento, emprestando ao que tocava o meu triunfo supremo? Pois por mais que me forçasse, esquecendo a baixa tolerância ao esforço, afectivo ou não, essa perpetuação assegura-se-me tão patética quanto a dúzia ou a meia dúzia. Existem dezenas, centenas, milhares, por aí fora. Não reconheço a legitimidade de uma unidade popular, reduzida à contagem de ovos numa mercearia qualquer. E agora vejo o turpor rebolando com a vulgaridade do anti-esteticismo, como o som dos Buraca som sistema (que uma força inata não me permite escrever com k) atravessando a sala de óculos escuros e um enorme logo da Quiksilver estampado com a incandescência do fluorescente mau gosto, magnetizador da minha estupefacção, prendendo-me o olhar longe do livro que me ocupa as mãos. Incivil, observo o casal que por mim passa até ao cúmulo da insolência. Ela, estudante universitária daquele rechonchudinho portuguesmente saudável, de cabelo amaciado e sorriso simples, desloca-se invisível na sua vulgaridade cuja virtude é ser sóbria, ao lado dum anormal que parece saído dum pódio da ‘Volta A Portugal Em Bicicleta’. No iPod, Richard Ashcroft repete-me algo que imprime uma justiça poética ao momento. E ele, alto, magro, com barba forte, daquela que é feita diariamente e ainda assim não esconde a cinzentude da cara, com grossos pêlos pretos nos finos braços, alardeando uns calções logo no primeiro dia de calor do ano, e com esse tipo de ténis de montanhismo timberland's ou merrel's que os meus conterrâneos insistem em adorar. Nada há de mais profundamente anti-estético do que ténis. Só talvez o som dos Buraca Som Sistema. Impelindo o cadáver pela lavoura de sensibilidades do CCB, não conseguia esconder aquele labreguismo de quem nasceu em Portalegre, Penafiel ou algo do género (salve a vénia ao Conde d’Abranhos) e com olhos torpes desafiava perfidamente o meu olhar estacado, nessa tarde de dia 11 de Março de 2009. E agora, ao relê-lo, embrumado no crepúsculo que me municia de temperança, embusteiramente distanciado por estas poucas horas que me acentuam a bipolaridade arrogância-remorso, logo me diluo na definição última de todo o meu intelecto e tradução inequívoca do meu transtorno narcísico – toda a minha Frustração. De nihilo nihil. Multatuli disse que todas as virtudes têm irmãs ilegítimas que desonram a família. E eu – desprimor de tudo quanto todos pensam de mim – mais não sou do que o strictissimae sensu da Frustração... e tudo daria em seu desfavor (até a fertilidade do pensamento ou a coroa da razão), para sentir a normalidade indulgente; e enfraquecer-me, perdoando; e purificar-me, esquecendo. Mas é esta a minha limitude: a constância repetitiva da derrota e da sua irremediabilidade. Sei que o perdão valer-me-ia apenas a honra do eterno ódio. Minto-me e fustigo-me com o ensino socrático segundo o qual aquela formosura que me colora os sonhos é uma tirania de curta duração. Anseio pelo tempo quente e abafado em que as sinapses no cortéx são menos frequentes e abunda a inibição neurotransmissora, onde não reste um sopro dessa perturbação de ânimo com nome de mulher que me é predilecção suprema, fausta, imprudente dos sentidos. Serei maior depois.
29/05/2009
(...)
28/05/2009
...um desdém cheio de tédio por eles, que desconhecem que a única realidade para cada um é a sua própria alma, e o resto - o mundo exterior e os outros - um pesadelo inestético, como um resultado nos sonhos de uma indigestão de espírito.
A minha aversão pelo esforço excita-se até ao horror quase gesticulante perante todas as formas de esforço violento. E a guerra, o trabalho produtivo e enérgico, o auxílio aos outros... tudo isto não me parece mais do que o produto de um impudor,
e perante a realidade suprema da minha alma, tudo o que é útil e exterior me sabe a frívolo e trivial ante a soberana e pura grandeza dos meus mais originais e frequentes sonhos. Esses, para mim, são mais reais.'
Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa
27/05/2009
20/05/2009
16/05/2009
'Ontem eu vi um tipo na Avenida,
Depois da bebida,
Perdeu-se em Lisboa.
Ontem, mas bem no centro da cidade,
Bateu-lhe a saudade,
O homem chorava Angola...
Dizia: Táxi, Táxi, vai me leva p'ra Luanda,
Faz buéda tempo que eu não vejo a minha banda
Táxi, Táxi, quero ver minhas praias
Nas pedras da ilha zambóia e takaya'
'Remember, remember the 5th of November,
The Gunpowder Treason and Plot,
I know of no reason
Why the Gunpowder Treason
Should ever be forgot.
Guy Fawkes, Guy Fawkes, t'was his intent
To blow up the King and Parli'ment.
Three-score barrels of powder below
To prove old England's overthrow;
By God's mercy he was catch'd.
With a dark lantern and burning match.
Holloa boys, holloa boys, let the bells ring.
Holloa boys, holloa boys, God save the King!'
14/05/2009
11/05/2009
06/05/2009
– ‘A Perestrelo está com um bronze… Olha aquele biquíni!’.
E eu – tolo desalinhado, entre o céu e a duna, a mortalha e a sopa, envolvido por amigos que fazem filtros e despretensiosos comentários – não vejo a Perestrelo, nem as mamas uns metros abaixo, nem as coxas de ginásio da amiga da namorada do amigo; apenas me deixo cuidar pelo atrevimento dessa magreza no país dos enchidos e do cozido à portuguesa, pelo descabimento da brancura num país de sol, pelo pejo desse riso num país tão grosseiro, pelo andar distraído no país das aparências…
Duma brancura enferma, mas casta. Jactanciosa palidez! Ostenta-a por entre as reproduções aborígenes na trivialidade desse bar onde reina a congeneração e a resignação do que é e ao que é plebeu (a ordinariedade é circular como um calendário, monótona como as conversas suburbanas, contagiosa como a varicela num teatro cheio de miúdos).
Caminha vagarosa e majestática por entre a desatenção geral. Mas a minha está bem presa pelo freio, com as rédeas da soberba, por tudo o que não é saboreado pela boca insulsa, insípida das massas dissaboridas.
Pudera,
– não fosse o embaraço que os actuais laços já me trazem, e a inegável imaturidade para algo mais –
apreciá-la-ia sentado na cama onde dormia, deleitando-me da mesma forma como me deleitaria, assombrado de devoção, ao ver a minha rosa dormir – não fosse a sujidade da idade e a conspurcação do tempo –; e desenhá-la-ia, pintá-la-ia como Otto Dix; esculpi-la-ia como Rodin; dedicar-lhe-ia odes e poemas que falassem de azuis profundos, mitologias bíblicas, chuvas funestas; escrever-lhe-ia uma tragédia onde fosse Naiáde e Nereida, Afrodite e Alcmena… Para apenas reviver, desfalecendo, aquela ténue (e tremendamente volúvel) sensação que nos seda da pungente dor inalienável à vida e da molesta monotonia que nos tempera os dias malquistados – distracção tão imerecida como a Arte – mas que é crime da nossa classe, fulgor deste vanguardismo helénico, indumentado por uma languidez overdósica e adornado pela divagação tão fértil quão absurda, infamemente oprobriosa por jamais saciada.
05/05/2009
Maria Luís Serras Pereira, muy ilustre descendente de Nuno Álvares Pereira, Santo Condestável --- 01:26
01/05/2009
In the cold, coldest of nights
The fire I light, to warm my bones
I've had enough, of the dreadful cold
And from the flames, appears Salome
I stand before her amazed
As she dances and demands
The head of John The Baptist on a plate
In the morning, shaken and disturbed
From under soft white fur
I see the dust in the morning bright sets the room alive
And by the telly appears Salome
I stand before her amazed
As she dances and demands
The head of Isidora Duncan on a plate
Oh, It's Salome
Oh, It's Salome
In the cold, coldest of nights
The fire I light, to warm my bones
I've had enough, of the dreadful cold
And from the flames appears Salome
I stand before her amazed
As she dances and demands
The head of any bastard on a plate
29/04/2009
Poder da Minoria
1/3 X = 2/3 Y
Obteremos, desse modo, uma equação com duas incógnitas, sabendo que a soma das incógnitas x+y é igual a 54. É, por conseguinte, lógica e matematicamente possível o seguinte sistema:
x + y = 54
que, depois de resolvido, nos apresenta X como 36 e Y como 18, resultado que representa matematicamente um empate dentro do critério dos 2/3. Não há, assim sendo, dúvidas que um voto decide, mesmo que o grupo menor varie de 0 a 18!
24/04/2009
onde v é a velocidade da luz e m a massa da onda, c a intensidade da onda e t o preciso instante temporal em que rebenta, x o espaço e alfa é a sua personalidade - o seu movimento linear (vulgo 'balanço' entre massa e velocidade)... cada alfa profetiza a imprevisibilidade do aleatório (!), em milhoes de sistemas de matrizes como:
14/04/2009
zane lowe sessions
Do you know me? I don't think so!
You romanticize the dark and gloomy past
Trying to escape from the underclass
You darkened the bright and beautiful day
You're breaking my heart in every way
And tell me everything is dandy and fine
You're no friend of mine
I took you in and you stole from me
But you still got everything I need
You're walking so tall, you're looking so mean
You're walking so tall, you're looking so mean
But you tell me everything is dandy and fine
You're no friend of mine
Do you know me? I don't think so!
Do you know me? I don't think so!
You romanticize the dark and gloomy past
Trying to escape from the upper class
You darkened the bright and beautiful day
You're fucking up my head in every way
And tell me everything's dandy and fine
09/04/2009
06/04/2009
01/04/2009
Estado de graça
26/03/2009
A Despersonificação da Virgem
11/03/2009
obg pela produção, de qq forma...
09/03/2009
O Fastidioso do Actual
Claustro pendente sobre a pirâmide invertida do meu discernimento.
Copiada, falsificada, contrafeita.
Não as ames – nunca as ames –aborrece-me o sentimento.
Cruz que é ser maior do que os homens
Raça daqueles que se acham aquilo que pensam ser
Estirpe inviolada, castamente exigente
Dos que em pé, estóicos, se arrogam de viver
Corre, Lázaro! Sente, goza, ama!
Deita-te sempre mais leve na cama.
Parte, torce, cala, chama.
Nunca mintas a um estranho
(e a quem conheces engana!)
Queres a verdade? Exige-ma.
(Que escrevo de forma compulsiva,
Que me surgem poemas como quem espirra,
E epifanias! no epicentro do mundanismo,
Vendo os outros pela desconsideração do egotismo?)
Então lê-me, eufórica: grita-me essa passagem!
De Vida, Verdade, Poesia e Arte
Mergulha na teatralidade e deixa-me admirar-te
Finge a naturalidade que te é ausente
Para ilusão do apático, enfadonho presente...
Cala-te!, harmoniosa, deixa-me degustar o que dizes
Prova-me, intrépida, que só mereço amar actrizes.
26/02/2009
18/02/2009
Tempo
O tempo perece-nos e leva-nos. Não por vicissitude, não por capricho, só porque sim. Porque existe, porque passa; e, distraído, nunca espera. O tempo tira-nos o tempo. Rouba-nos o que já tivemos: a fábula acabou e deixa-se de acreditar em livros. Esses ombros que te descaem são o marasmo da idade que não esqueces, e essa barriga onde adormeço é o depósito dos teus anos dourados. O teu longo cabelo dourado está fino e as mamas renderam-se à gravidade quando as ancas se sacrificaram à feridade dos partos. Mas nada que não esperássemos: o corpo é, desde o início, o condenado de se ser. O teu prejuízo foi o espírito, porque calados, graves e maduros perdemos a impulsividade estúpida da juventude, que nos prejudicava mas que incendiava aquele quinhão da alma que não arde por dinheiro ou estatuto, respeitabilidade ou estabilidade.
A expectação dessa era esticava até ao lado longínquo do devaneio.
Agora, escondendo o meu alvoroço atrás da distância, não me deslumbra a sabedoria das mulheres de rua nem as rugas da prova. Expeço a temperança que fabulas e a desapiedada gravidade com que me imitas, copiando a índole grisalha de que esperava que me libertasses. Porque o que quero são as palpitações e as improvidências! E aquele chorar balançante. E as tuas dúvidas insensatas. Vivo por esse fôlego de imbecilidade infantil que já não to sinto, hesitante e tremente como um caloiro, farto e fértil como os campos verdes de Maio.
Espreito, mas só por um instante. Baixo-me, recolho-me na posição fetal onde me agasalho de ternura, depois de indecorosamente cumprir o priapismo com que pareço acordar todas as manhãs. Corro parado e toco a redenção com as pontas dos dedos, mas são os meus medos lhe ditam a impertinência, pela irrecorrível sentença da irreversibilidade do tempo – que não devolve o branco da candura. Tempo gasto, vasto, nefasto. Fosse de pendência monetária e pouparia toda a minha vida por uma máquina que me retornasse àquele momento antes do lúgubre ponto de não-retorno que nos raptou a alvura!
Sim, o Tempo. O mesmo que nos tira o tempo, e nos perece e leva, também nos conserva nessas masmorras do mesmo tempo que são a memória.
Nestes termos e pelos mais de Direito, pede-se a sentença de Vossa Excelência. O vosso douto despacho de fls. que me não interessam vaticina a usurpação de tudo que nos conhece. E a morte é o tempo, que nos cobiça, e nos esquecerá; e esquecidos ainda em vida, quando pesando aos netos, enlevados, ocupados, fingimos a calma e a resignação ao inconformável. Na última paragem desempenhamos o papel de uma vida ao transmitir a harmoniosa sensação de plenitude aos que agora iniciam a viagem.
O tempo que cobriu a distância deste tempo é a ponte desfeita que nos cativa na eterna margem dos que esqueceram aonde vai dar o caminho.